Mais de 50 crianças e adolescentes de rua costumavam dormir na praça da Igreja da Candelária, região central do Rio de Janeiro. Na madrugada de 23 de julho de 1993, policiais militares, em horário de folga, atiraram contra nove deles, com idades entre 11 e 20 anos. Dos atingidos, apenas um sobreviveu. Durante as investigações, levantaram-se diferentes razões para o crime. De uma pedra atirada contra uma viatura da polícia por um dos garotos até o não pagamento de propina aos PMs coniventes com o tráfico de cocaína.
Quatro pessoas foram acusadas após a chacina: Marcus Vinícius Emmanuel, Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir Gomes de França. Em 1996, Nelson Cunha confessou sua participação no crime e acusou seus colegas policiais Marco Aurélio Alcântara, Arlindo Lisboa Afonso Júnior e Maurício da Conceição, assassinado em 1994.
Desses, Emmanuel, Alcântara e Cunha, foram condenados a penas que chegaram a 300 anos de reclusão, respectivamente. Mas, hoje, estão em liberdade, indultados ou em condicional.
Arlindo foi condenado a dois anos porque uma das armas usadas na chacina foi encontrada em seu poder. Cláudio, Jurandir e Cortes foram inocentados com o depoimento de Cunha e absolvidos a pedido do Ministério Público. Os dois primeiros foram indenizados pelo Estado por ficarem presos injustamente por quase três anos.
Na época, os meninos afirmaram que oito policiais participaram da ação, e Wagner dos Santos, o único sobrevivente, foi contundente ao reconhecer Cortes como um de seus algozes. Hoje, a vítima mora na Suíça, após ter sofrido um atentado e recebido constantes ameaças de morte. Carrega as sequelas do crime, como balas alojadas no corpo.
Os promotores do processo afirmam que havia mais policiais envolvidos, mas durante as investigações não foi possível identificá-los.
A repercussão internacional decorrente da exploração do caso na mídia e do trabalho das ONGs ajudou na condenação dos policiais. Mas a pressão da mídia também prejudicou o andamento do processo por dar a ele um sentido de escândalo, impedindo o aprofundamente na investigação. Daí, alguns foram injustiçados e outros saíram impunes.
O Estado, porém, não teve competência para garantir uma vida melhor ao restante dos jovens que dormiam sob as luzes da Igreja da Candelária. Muitos sobreviventes morreram assassinados, vítimas da Aids, outros serviram ao tráfico, foram para prostituição e há os que desapareceram. Sandro, o sequestrador morto pela polícia no caso do ônibus 174, caso que inspirou um filme, escapara daquele dia na Candelária.
Nas últimas duas décadas, o Brasil bateu recordes na geração de empregos, reduziu a fome e a pobreza, manteve sua economia estabilizada, consolidou sua democracia. Tornou-se parte de um acrônimo (Bric), ganhou respeito internacional e começou a pavimentar seu caminho para se tornar a quinta maior economia do mundo – processos que, em maior ou menor grau, devem ser creditados aos governos que conduziram o país nesse período. Diante de um cenário de pujança como esse, pergunto-me porque o Brasil continua encontrando formas idiotas de matar seus filhos.
Pensávamos que não cometeríamos os mesmos tipos de “erros” de 20 anos atrás, mas não foi bem assim. Carandiru (1992), Vigário Geral (1993), Ianomâmis (1993), Candelária (1993), Corumbiara (1995), Eldorado dos Carajás (1996) ganharam roupagem nova e continuam acontecendo. Ou seja, o modelo se se manteve: continuamos matando gente pobre.
Nos últimos dez anos, o país assistiu a centenas de assassinatos de trabalhadores rurais indígenas, quilombolas e ribeirinhos em conflitos agrários (e daqueles que ousaram os ajudar), massacres de sem-teto e população em situação de rua, mortes de homossexuais. Isso sem contar os jovens negros e pobres na periferia de grandes cidades, como São Paulo.
Como em agosto de 2004, quando moradores de rua foram espancados no Centro de São Paulo, na região do Largo São Bento, Praça João Mendes e Rua 15 de Novembro. Sete não resistiram e morreram em decorrência dos ferimentos. Policiais militares e seguranças privados foram apontados como responsáveis, formando uma espécie de grupo de extermínio.
Ou em maio de 2006, em que cerca de 500 pessoas, a maioria de jovens, negros, pobres e moradores de periferia foram mortos no Estado de São Paulo. O indícios apontam para policiais e grupos de extermínio ligados a eles como retaliação aos ataques do PCC.
Ou ainda a condição dos guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul, que enfrentam a pior situação entre os indígenas do Brasil, apresentando altos índices de suicídio e desnutrição infantil. O confinamento em pequenas parcelas de terra por conta do avanço do agronegócio no estado é uma das razões principais para a precária situação do povo. O Estado vem concentrando a maioria dos assassinatos de indígenas no país, boa parte delas diretamente relacionadas com a disputa pela terra. Mesmo em reservas já homologadas, os fazendeiros-invasores se negam a sair. E contam com a ajuda da segurança pública, a mando do poder público ou a soldo particular.
Muitos policiais estão envolvidos com os crimes citados. Poderiam muito bem afirmar que estava “cumprindo ordens”, como os nazistas em Nuremberg. Pois, o que ocorreu em muitas dessas chacinas foi um servicinho sujo que parte de nós, “homens e mulheres de bem”, desejavam (e ainda desejam) em seus sonhos mais íntimos: a “limpeza social” desde país das “classes perigosas” e dos entraves para o progresso. Vamos ser sinceros. Não é que a nossa sociedade não consegue apontar e condenar os culpados por todas elas como deveria. Ela simplesmente não faz questão. Porque, como já disse aqui, não suportaria um espelho no banco dos réus.
(Com informações e texto de Fernanda Sucupira e Natália Suzuki, pela Repórter Brasil)
Leonardo Sakamoto
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