A palavra viva é capaz de transpor os limites do papel e entrar na vida do leitor. Algumas entram de tal forma que mudam a forma de pensar de quem lê. E assim começa a construção do vínculo entre o escritor e o leitor. Vínculo que pode gerar uma amizade misteriosa, intermediada pelas palavras. Um breve exemplo: há uns 15 anos, li um ensaio sobre a palavra leveza escrito por Italo Calvino. O livro é Seis propostas para o próximo milênio. Nele afirma que prefere a leveza ao peso, pois buscou subtrair o peso ora das figuras humanas, ora das cidades, ora da vida. Talvez seja esse um dos principais objetivos das palavras como instrumento terapêutico, ou seja: diminuir o peso que cada um carrega.
Por outro viés, aqui no Brasil os negros marcaram nossa história com a leveza de seus cantos e danças. Com alegria apesar da escravidão marcaram nosso povo, seja nas artes, no Carnaval ou na criação da capoeira. Na história mundial há vários exemplos, como o conhecido humor judaico gerado no meio das tragédias. Nos últimos anos está sendo revelado que até no Holocausto os judeus criaram piadas sobre si e os nazistas.
A vida é pesada, não faltam perdas sofridas e frustrantes. Aliás, um dos fatores do peso de viver se origina nas frustrações e privações. Os que suportam menos as perdas tendem a se mortificar, e aí reside boa parte do peso. As mortificações são abatimentos psíquicos originados nos variados desgostos, como vivência de separações e desamparos. Então a própria companhia pode se tornar insuportável, com monólogos interiores torturantes. São as injustiças no mundo privado que cada um faz consigo mesmo por necessidade de castigo.
Por outro lado, a conquista da leveza é possível para quem pode sorrir graças ao sentido de humor. Um sentido que implica suportar as falhas e conviver com as incertezas. Ao se questionar, é possível a pessoa ser mais tolerante, mudar de ponto de vista sobre si e sobre os outros. Já o peso pode estar ligado a uma espécie de doença, que poderia ser definida como queixite, a inflamação da queixa. Como queixosos nos tornamos infelizes, pois sempre há motivos para choros, faça sol, faça chuva. Outras vezes choramos com sobradas razões, são tristezas da alma que precisam ser lavadas, e lavando nos aliviamos.
A realidade é traumática, e as histórias geram alguma leveza, como esta: um dia, chegaram a uma aldeia a Verdade e a Parábola para discursarem. A praça principal estava reservada à Verdade, e quando foi falar só havia quatro pessoas e um cachorro. Já na outra praça do lugar, a Parábola falou diante de um grande público. Ao final da noite, as duas se encontraram e a Verdade abatida perguntou à Parábola por que tão poucos foram vê-la, se ambas pensavam igual. Então a Parábola disse que tudo dependia de como se dizem as coisas. Precisamos das histórias, das danças, das músicas, do humor para transcender. Só com a leveza podemos levitar sobre a pesada realidade.
Por Abrão Slavutzky, psicanalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário