A situação fiscal do Brasil não é tão tranquila quanto sugerem as autoridades nem tão catastrófica como insistem alguns portadores das virtudes da austeridade. Há muitos anos estamos a acumular desperdícios e a escolher mal as prioridades, juntamente com um controle laxista da gestão dos recursos públicos. As informações mais recentes sobre o déficit público e o seu comportamento não revelam, entretanto, tragédia iminente.
No acumulado de 12 meses, o déficit nominal foi de 3% do PIB: gastos com juros de 5% e superávit primário de 2%. Aparentemente, não haveria espaço para análises de tal forma divergentes. Afinal, desde o Plano Real, o déficit tem sido mantido sob controle e lentamente é reduzido.
Dois motivos podem ser apontados, no entanto: 1. Frequentes lacunas de clara comunicação sobre a ação fiscal. 2. Uma propensão por manobras contábeis tão exóticas quanto inúteis, capazes de lançar dúvidas sobre a apreciação das contas públicas.
Quando o voluntarismo da autoridade ignora as reações dos agentes privados, é preciso lembrar que o faz não por sua conta e risco, mas da economia nacional. Todos concordam que as agências de rating antecipam muito mal o risco, mas ignorá-las é um grave erro. Por uma miserável e desagradável razão: a opinião das agências influi no comportamento dos operadores do mercado e, em certa medida, controla as suas ações.
O cálculo do déficit, tanto quanto o da dívida, envolve muitos aspectos contenciosos e sempre alguma arbitrariedade. Logo, o que precisamos fazer é dar transparência à contabilidade pública, para restituir-lhe uma sólida credibilidade. De nada adiantam os truques para transformar “dívida” em “receita” e assim construir imaginários superávits fiscais. Ou não registrar adequadamente o montante da dívida. Parece óbvio, por exemplo, que no cálculo deve ser incluída a variação dos “Restos a Pagar” não cancelados no último dia do exercício.
Algumas observações são necessárias: 1. A relação entre a Dívida Pública Líquida e o PIB introduz maior arbitrariedade na avaliação da situação fiscal. Gera mais sombra do que luz. 2. Não há dúvida sobre a importância fundamental da dívida pública tanto para o financiamento de projetos de desenvolvimento de infraestrutura com taxa de retorno menor do que a do mercado (com o subsídio registrado no orçamento) quanto para o exercício da política monetária. 3. Como disse o gigante Alexander Hamilton, criador das finanças públicas dos EUA, “uma dívida pública não excessiva será para nós uma bênção”, o que nos lembra que a natureza da dívida pública é oposta à da dívida privada. 4. Sempre haverá uma discussão sobre dívidas contingentes.
Já a situação da relação Dívida Bruta/PIB no Brasil não era confortável em 2008: quase duas vezes a dos países emergentes. Com relação à Dívida Líquida/PIB, é visível que a mudança do seu comportamento está ligada à arbitrariedade da sua classificação a partir de 2008, o que lhe tira a importância. O desconforto acentua-se quando lembramos que nossa Dívida Bruta/PIB estava, em 2012, no mesmo nível da alemã e da francesa, antes da crise do Lehman Brothers. A despeito disso, é ridículo supor que estamos às vésperas do apocalipse fiscal.
A dinâmica do déficit nominal e da relação Dívida Bruta/PIB depende da evolução da economia. A receita tende a variar na mesma direção do PIB e do emprego. Parte da despesa deverá ir no sentido inverso, e mostra que os efeitos do déficit fiscal precisam ser julgados à luz da conjuntura. Basicamente, quando por qualquer motivo a demanda privada é insuficiente para manter o pleno uso do mais escasso dos fatores de produção, nada mais natural do que suprir essa insuficiência com um aumento da demanda pública por meio de um aumento do déficit fiscal. Por outro lado, quando não existem fatores de produção na proporção adequada e o excesso de demanda global dissipa-se em inflação e em déficit em conta corrente, a solução é reduzir o déficit fiscal para cortar a demanda pública.
Por Delfim Neto
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