Fonte: Valor Econômico
Por Daniela Chiaretti | De Campo Grande e Mossoró (RN)
Cisternas de cimento ou cisternas de plástico? Esse é um debate que ganha calor no quente Semiárido nordestino e foi disparado em Brasília. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) apoia os reservatórios de água construídos a partir de placas de cimento, tecnologia que tem intimidade com a região. O Ministério da Integração Nacional (MI), que chegou mais tarde no esforço de universalizar o acesso à água de qualidade para os moradores das zonas rurais, distribui cisternas de polietileno. Batizadas de “cisternas de plástico”, a opção da Integração Nacional tem que vencer as críticas das entidades sociais que atuam no Semiárido, a desconfiança da população e o calor nordestino.
Os dois tipos de reservatórios captam água da chuva e têm capacidade para estocar até 16 mil litros, o suficiente para atender às necessidades de uma família de cinco pessoas durante seis meses de estiagem. Essa água é usada para beber água, escovar os dentes e cozinhar – o que na região se chama de “primeira água”.
A cisterna de placas custa R$ 2.400 e é construída com mão de obra local. A de plástico custa R$ 5.000, computando-se instalação. As duas opções, ao lado de outros tipos de tecnologias para reservar água para a produção e animais, fazem parte, desde 2011, do programa Água para Todos, coordenado pelo Ministério da Integração Nacional. A meta é beneficiar 750 mil famílias até 2014.
“Esse é um debate muito apaixonado”, reconhece Arnoldo de Campos, secretário de Segurança Alimentar e Nutricional do MDS. “Entendemos que há várias formas de fazer este trabalho, que não existe caminho único.” O MDS trilha há vários anos o caminho desenhado pelas entidades sociais, de construir cisternas de placas de cimento, capacitando agricultores familiares no processo e movimentando a economia local ao comprar materiais na região.
“O MDS têm uma relação com as entidades sociais desde o nascimento. Essa solução estava desenvolvida e resolvemos adotá-la”, explica. Ele refuta a ideia de que as cisternas de polietileno são alternativa ruim e deformam com o calor. “Existem em todos os condomínios de luxo do país”, diz.
“A opção pela cisterna de polietileno foi para agilizar o processo”, afirma Walber Santana Santos, diretor de gestão de programas de desenvolvimento regional do MI. “É usada em países com Semiárido mais agressivo do que o nosso.” O ministério já tem as 300 mil cisternas de polietileno contratadas e até agora, diz Santos, apenas 160 apresentaram defeitos. “O polietileno é resistente e a cisterna é feita para esse clima. Não derrete, não contamina a água e pode durar 30 anos”, diz. “Não é uma tecnologia que veio competir com a outra, são complementares.”
Essa não é a visão de Naidison Baptista, coordenador-executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) pelo Estado da Bahia, para quem a concentração de terra no Semiárido está intimamente ligada à concentração de água. A ASA é uma rede formada por 3.000 organizações da sociedade civil que atuam na região e foi o pivô da sugestão do programa de construção de um milhão de cisternas.
Baptista não gosta da expressão “combate à seca”, lembra que se trata de fenômeno natural e que é mais adequado pensar em “conviver com o Semiárido”. Não é semântica. “Políticas de combate à seca geram dependência. Na ASA buscamos outra lógica.” Para ele, a diferença entre cisterna de placa e de plástico vai além do material – as primeiras são um processo; as de polietileno, uma doação, diz. “Políticas assistencialistas, em vez de libertar, acorrentam a população.” Acredita que é preciso desenvolver “a política do estoque” para água, mantimentos, sementes. “Quem guarda usa no momento de mais necessidade.”
No governo federal existem R$ 4,5 bilhões para a execução do programa. Desse total, R$ 2,6 bilhões correspondem à Integração e R$ 1,9 bilhão ao Desenvolvimento Social. Está em curso nova geração de tecnologias de “convivência com o Semiárido”, com foco na produção e nos animais. Nessa nova fase há forte apoio da Petrobras, que está investindo R$ 200 milhões em tecnologias de armazenagem de água para produção de alimentos e para os animais.
A segunda geração de tecnologias de cisternas chega para quem já tem a da água de beber. Uma delas é a cisterna-calçadão. Constrói-se um calçadão de cimento de 200 m2 em área de declive. Assim, 300 mm de chuva enchem o reservatório de 52 mil litros.
“Eu me criei aqui. Era uma casa de barro”, conta Maria Nogueira, 80 anos. “Meu pai fez a casa em 1947. Água era só no açude. Buscava numa latinha, na cabeça. Hoje temos água encanada em casa.” Maria é moradora de Caiana, comunidade de 80 famílias, zona rural de Campo Grande. O município fica a 130 quilômetros de Mossoró, cidade do Rio Grande do Norte que ganhou fama como o lugar que mais produz petróleo em terra no país. Mas em Campo Grande a história é outra. É entrar na zona rural e ver casas de taipa, o barro armado na madeira.
Maria tem uma cisterna-calçadão no terreno onde vive com o filho Antonio. Plantam feijão, milho e sorgo. “Vou fazer mais plantio”, promete. Também têm algumas cabeças de gado e ovelhas. “Se não tivesse as cisternas, não sobrevivia”, diz Antonio.
Na casa do agricultor José Maria da Costa, 55 anos, além da cisterna de placa há a barraginha. É uma pequena barragem, com água suficiente para aguentar 4 meses de seca e dar de beber aos animais e regar a plantação de milho, feijão e melancia. Ali ele vive com a mulher Expedita e cinco filhos. “A gente tinha que buscar água de jumento, era difícil”, lembra Expedita, que deixou o jumento “pro meio do mundo”. Ela agora tem água e tempo. Começou a fazer doces de goiaba. Faz 40 quilos por mês e ganha R$ 1 mil. “Comecei este ano”, diz. Com o dinheiro, comprou a mesa e as cadeiras da cozinha.
Na zona rural de Campo Grande não há quem não fale da chuva de 19 de abril. Naquela sexta-feira à noite, durante 13 horas, choveu 150 mm. Foi uma das dez maiores precipitações em 110 anos. “Em uma noite encheu a cisterna”, lembra a agricultora Damiana Fernandes da Silva. “E tem gente que perdeu, que não botou a calha.” Cisterna e calha são palavras vitais para quem vive por ali.
Caiena é área humilde, mas as coisas estão mudando por lá e essas espécies de mini-espaçonaves caiadas de branco ao lado de cada casa têm sua parcela de responsabilidade. Todas as famílias da comunidade rural têm sua cisterna de placa. O funcionamento é simples. A primeira chuva que vem depois da estiagem lava as telhas. Os agricultores recolocam as calhas e os canos de PVC, retirados durante os meses de seca para que não estraguem. Começam a estocar água depois da segunda chuva. Retiram a água através de uma pequena bomba manual. Cursos de gestão ensinam os agricultores a cuidar da água, fazer reparos e construir cisternas.
Na pior seca dos últimos 50 anos, não houve êxodo rural, saques ou corre-corre de carro-pipa. “É política social na veia”, diz a economista Tania Bacelar de Araújo, que cita a aposentadoria garantida pela Constituição Federal e o Bolsa Família. “Veio a seca, mas não tem mais fome aguda. Ninguém precisou sair da região ou saquear o supermercado. Agora podem comprar”, diz a professora do programa de pós-graduação em geografia da Universidade Federal de Pernambuco. “O problema agora foi que faltou água para produzir e para os animais.”
A jornalista viajou ao Semiárido a convite da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA)
Texto originalmente publicado no jornal Valor Econômico