Foi promulgada hoje a Emenda à Constituição incluindo no art. 7º o parágrafo único que garante igualdade de direitos às trabalhadoras e trabalhadores domésticos. Acho que é bem tranquilo para a maioria dos seres racionais que esse fato não é necessariamente um avanço. É, quando muito, uma reparação.
A luta pelos direitos trabalhistas tem seu início nos processos de industrialização. Desde a Europa até o mais longínquo dos países, direitos como férias, aposentadoria e descanso semanal remunerado surgiram conforme a massa de trabalhadores industriais cresceu. Através de greves, lutas e mortes, os sindicatos lentamente conquistam direitos para seus representados. Os demais trabalhadores conseguirão seus direitos ou por lutas semelhantes, ou por equiparação ou pelo avanço do Estado de Bem Estar Social, que ganhou peso na Europa para fazer frente à União Soviética.
O caso brasileiro é um bom exemplo. Nossas primeiras leis de proteção ao empregado surgiram de forma autônoma: a lei que protegia os funcionários de determinada empresa férrea, dos trabalhadores dos correios etc. Conforme essas leis esparsas foram aumentando o governo Vargas tratou de consolidá-las em um único documento, em um ato que foi muito mais para garantir o controle do movimento sindical do que propriamente assegurar os direitos trabalhistas.
Porém, a questão que quero colocar aqui não é jurídica. Além de comemorarmos o marco civilizatório que é a Emenda Constitucional 76/2013, precisamos entender porque um dos maiores setores de trabalhadores(as) ficou à margem de direitos básicos por tantos anos. Alguns deles inclusive já listavam no rol de garantias trabalhistas desde a década de 1940, como as horas extras. Ainda, por que em muitos países do mundo desenvolvido vários destes direitos até hoje não são dados às empregadas domésticas? Nos Estados Unidos, por exemplo, só o estado de Nova Iorque equipara o trabalho doméstico às outras formas de trabalho. Na Espanha, há diferenças em relação às férias e outros direitos (quando comparados com outros trabalhadores).
Essa é a pergunta por trás do problema. A resposta certamente tem muitos fatores. Me aterei, por questões práticas, a alguns deles.
Vou me fixar no caso brasileiro com o qual sou mais familiarizado, mas de fato a situação se repete indefinidamente mundo afora. Em países ricos ou pobres o quadro é parecido, apesar de ter intensidades bem distintas.
Em uma pesquisa recente do IPEA, cujo resumo foi publicado em artigo da professora Hildete Pereira de Melo, da UFF, alguns dados dão a dimensão da disparidade do trabalho doméstico em relação aos outros trabalhos.
O primeiro: quem trabalha em serviços domésticos? Segundo o IPEA, mais de 92% são mulheres.
O segundo: qual a cor da pele de quem trabalha no setor? Mais de 60% são negras.
Terceiro: quanto se paga em média para a empregada doméstica? 42% não recebem nem um salário mínimo.
Existem inúmeros outros dados que poderiam ajudar a compor o cenário óbvio: o trabalho doméstico é socialmente marginalizado não pela sua natureza (doméstica). O que fez este trabalho ser até hoje tão inferior em direitos é o perfil do(a) trabalhador(a), não do trabalho.
Mulher, negra e pobre. É este o ponto. O preconceito social contra o trabalho doméstico é fundado, basicamente, em valores de uma sociedade machista, racista e de classe. Não que os trabalhadores que têm direitos assegurados há mais de 70 anos não sejam explorados e diminuídos, não é isso. O que choca neste cenário é que a situação da trabalhadora doméstica parte da exclusão. E mais. Evidencia o Brasil aceita esta segregação com certa naturalidade.
É lógico que com a aprovação da Emenda muitas pessoas que comemoraram. Homens brancos e ricos, inclusive. Porém, não deixa de ser chocante a falta de debate sobre os pilares que sustentaram até ontem (literalmente) esta exclusão jurídica. Vejam: uma lei é sempre resultado de um debate ou briga de determinado grupo de interesse. Alguns assuntos, entretanto, são de interesse de todos. Se todos comemoraram, por que nunca se interessaram?
Talvez porque discutir com toda a sociedade significaria descobrir que o trabalho doméstico é permeado valores que sustentam toda a humanidade. Valores que, inclusive, deveriam ter sido banidos do planeta.
Mulheres seguem ganhando menos que homens. Negros, menos que brancos. Mulheres negras compõem a parte mais explorada, mais mal tratada de nosso tecido social. A divisão de tarefas domésticas segue na linha machista: homens, quando muito, cozinham por prazer. Fazem o banquete. Mulheres, ralam para fazer a jantinha do dia a dia. Todas as tarefas domésticas são relegadas na maioria dos lares, às mulheres. Mesmo nas casas onde há uma divisão mais justa do trabalho, mulheres trabalham mais do que homens.
O que deve ser realmente debatido na aprovação da Emenda Constitucional nº 76 de 2013 é até quando o mundo seguirá nesta lógica atrasada que vem de tempos imemoriais. Se abolir as classes sociais é algo impossível hoje, não há uma única justificativa racional para a manutenção de um mundo machista e racista.
Repensar a divisão do trabalho, a importância da paternidade, criar políticas públicas e mudar a educação familiar são medidas urgentes para banir para sempre o tripé gênero + cor + classe que dá margem para que situações como a questão das domésticas perdurem por tantos anos.
Enquanto este não for o debate central, continuaremos a ver revistas que ao comemorar novos direitos às mulheres negras e pobres, colocam na capa um homem branco, rico e com cara emburrado fazendo um serviço que deveria ser sua obrigação.
Um blog que é tudo, menos coxinha
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