Em 1971 um professor de Direito norte-americano escreveu um artigo publicado em uma revista jurídica chamada “The American Journal of Comparative Law” intitulado “The Jeito: Brazil institutional bypass of the formal legal system and its developmental implications”. A tradução seria algo como sendo “O jeito: o desvio institucionalizado do sistema jurídico no Brasil e suas implicações no desenvolvimento.”
Como o nacionalismo brasileiro funciona na base do sentimento de irmão mais velho, não foram poucas as críticas à publicação do texto. Não sei se houve uma tradução dele para português, mas mesmo em inglês o lúcido artigo de Keith Rosenn, em plena ditadura nacionalista, provocou a ira de alguns professores. Lembro de ter lido algum comentário bastante ácido sobre ele.
Em suma, o artigo de Rosenn procurou mostrar o que qualquer brasileiro sabe: nós temos sérias dificuldades em cumprir nossas leis. Arrumamos um jeitinho para tudo. Romantizamos o mal feito. Se nosso país não faz parte do grupo de mais corruptos do mundo, certamente não estamos entre os mais honestos
Se você discorda, só cuidado para não achar que tenho alguma posição mais conservadora em relação a isso. Eu concordo com a avaliação de que o brasileiro gosta da corrupção. Só discordo dos motivos. E como sempre há quem seja sério no Brasil, a faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas publicou ontem uma pesquisa sobre a percepção do cumprimento das leis no país.
A pesquisa repete um pouco o que já havia sido constatado por Rosenn em 1971 e em outro levantamento, salvo engano em 2005-06. Segundo o levantamento da GV, 82% dos entrevistados disseram ser fácil descumprir as leis no Brasil. Outros 79% afirmaram que sempre que possível o brasileiro opta pelo “jeitinho” ao invés de obedecer às leis.
Sem medo de ser radical, o jeito brasileiro é um eufemismo para “corrupção”. Levar vantagem descumprindo uma lei pode ter outros caminhos, é fato. Mas o mais comum é mesmo o ato de tomar vantagem pessoal contra o Estado.
Mas o mais interessante desta pesquisa, que eu não havia visto em outras, é o recorte sócio-econômico. Quanto menor a faixa salarial entrevistada, maior a percepção de que as leis são cumpridas no Brasil. Enquanto a média da percepção de cumprimento das leis no Brasil foi 7,3, o índice ficou em 7,6 para quem ganha até 2 salários mínimos (s.m.), 7,4 de 2 a 4 s.m., 7,3 de 4 a 12 s.m. e 7,2 para quem ganha acima de 12 salários mínimos.
Não posso apontar quais são todos os motivos que levam a este quadro. Existem os de sempre: questões históricas, culturais etc. Porém, desconfio ainda que exista mais uma: a forma como a percepção do cumprimento das leis se apresenta para as diversas camadas de nossa sociedade.
Talvez a comparação entre quem ganha menos e perceba que a lei é mais cumprida em relação a quem ganha mais esteja ligada à forma como se entende a ideia de “cumprimento das leis”. Para quem está nas franjas mais pobres da sociedade, a percepção de que a lei é cumprida é a polícia. Mais especificamente, a Polícia Militar. Para a parcela mais economicamente fragilizada, o descumprimento da lei se apresenta com ações diretas de repressão, que costumeiramente acabam em morte. Para quem tem mais dinheiro, o descumprimento da lei está ligado a crimes financeiros e contra a administração pública (a corrupção).
Você se engana se acha que meu alvo aqui é a PM. Apesar de ser contra a existência de uma instituição policial de cunho militar, qualquer polícia sempre está a serviço de alguém. Em países como o Brasil, sabemos quem. Como já disse Hélio Luz, nossa polícia é corrupta porque o brasileiro (especialmente os ricos) quer assim. Porque em “país de primeiro mundo”, como disse o ex-delegado, “prende o traficante, mas prende também o banqueiro”.
Por isso, talvez a percepção do brasileiro sobre o cumprimento das leis varie conforme a renda porque os crimes que são punidos no Brasil são os “crimes de pobre”, como o roubo. Lavagem de dinheiro, corrupção (em grandes escalas), sonegação fiscal e golpes financeiros em muitos casos sequer são investigados. Como na maioria dos casos quem participa disso é quem tem mais dinheiro, não me espanta que eles conheçam a casa onde moram.
E isso não é tudo. Alguém tem alguma dúvida que a abordagem de 3 adolescentes que fumam maconha na periferia é bem diferente das que são feitas em situações iguais, mas nos bairros ricos?
Se essa tese estiver certa, a solução para ela não passa só na construção de uma polícia mais igual, no sentido que esteja capacitada para investigar este tipo de crime. Isso é pouco. Para que nós um dia possamos chegar a este ponto, precisamos de uma “liberação” de nossas polícias para investigar os crimes cometidos pelos ricos.
Esta “liberação” é social e só é possível em um país mais igual. Enquanto a condição de privilégio que as classes mais altas têm dê a elas o status de intocáveis, não teremos nunca um sistema judicial minimamente justo. Falei aqui da polícia, mas a situação se repete em todas as esferas da Justiça.
Desde 1971 (até antes disso na verdade) a gente já sabe que privilegiar o jeitinho amarra o desenvolvimento e é peça chave para mantermos o país injusto. A pesquisa da GV mostra que não fomos muito longe. Enquanto valerem as palavras daquela mulher que disse que no Brasil só pobre e favelado ficam presos, as coisas não vão melhorar muito. E mesmo se melhorarem, acabar com o jeitinho é fácil. Quero ver acabarmos com o jeitão. Isso sim seria um avanço civilizatório.
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