terça-feira, 2 de abril de 2013

A liberdade deve ser exercida com o máximo cuidado para não ferir a liberdade dos outros


Por Maria Cláudia Cachapuz, Juíza de Direito no RS
“Algum fanático da população gritou que Jean Calas havia enforcado seu próprio filho Marc-Antoine. Esse grito, repetido, logo se tornou unânime. (…) Um momento depois, ninguém duvidava mais; toda a cidade foi persuadida de que é um imperativo religioso entre os protestantes que um pai e uma mãe devem assassinar seu filho tão logo ele queira converter-se. (…) Uma vez excitados, os espíritos não mais se detêm.”
Mesmo decorridos alguns séculos desde o episódio relatado por Voltaire no seu Tratado sobre a Tolerância, a dificuldade de lidar-se com questões de tolerância e de formação de opinião pública parece permanecer como marca da modernidade. De certa forma, a concessão ampla de espaços de liberdade individual torna dificultada, para quem não consiga compreender o significado da ideia de autonomia, a própria regulação. Compreender que toda liberdade, num espaço de convivência pública, exige o respeito à liberdade alheia, mesmo para o projeto da modernidade, ainda se configura como uma obra inacabada.
E tal ocorre porque a autonomia exige, em contrapartida, responsabilidade. Uma responsabilidade que não se esgota na boa intenção ou no interesse discricionário de uma vontade exclusiva, mesmo que fundada numa expectativa aparentemente legítima. Responsabilidade diz respeito a testar as possibilidades concretas e submetê-las a uma máxima universal, capaz de permitir que a conduta seja aplicável a todos. Isto exige, contudo, ponderação, só possível de ser exercitada quando a todos, no foro apropriado, é dado o direito à reflexão prévia e à testagem das situações postas em conflito.
Daí porque Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, preocupou-se com a descrição de como um homem _ Eichmann, responsável por um dos campos de concentração nazistas _, nada especial em relação a todos os outros, permitiu que, sob seu comando, fossem praticados atos de intolerância inimagináveis até então. De onde viria o requinte de maldade capaz de permitir a alguém comandar atos de intolerância contra o próximo sem, ao menos, ter a intenção dirigida a tanto? A resposta, em outras palavras, estaria não no excesso de um “querer” individual, mas na ausência do ato de “pensar”.
O fato é que o pensar encaminha à reflexão, à ponderação, à argumentação e à justificativa. Por isso, pensar pode ser chato, porque capaz de frear impulsos e travar emoções. Pensar pode irritar, porque exige conhecer o outro e enfrentar diferenças, inclusive para poder desafiá-las. Pensar, no entanto, é fundamental, porque é o que permite tolerar o outro na sua diferença, possibilitando a convivência.
Se todos reservassem espaços ao pensar, talvez a intolerância não fosse a marca dos dias atuais.

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