Campinas (SP) — O juiz Renato da Fonseca Janon, da Vara do Trabalho de Matão (SP), condenou as quatro maiores indústrias de suco de laranja do país (Sucocítrico Cutrale Ltda., Louis Dreyfus Commodities Agroindustrial S/A, Citrovita Agroindustrial Ltda. e Fischer S/A) a pagarem indenizações milionárias por danos morais causados durante mais de uma década de irregularidades trabalhistas no campo. As empresas devem pagar um montante de R$ 455 milhões e ainda encerrar a terceirização nas atividades de plantio, cultivo e colheita de laranjas, seja “em terras próprias ou de terceiros, localizados no território nacional, com produção agrícola utilizada em suas indústrias”.
A justiça julgou procedentes os pedidos feitos em ação civil pública pelo Ministério Público do Trabalho e considerou o prazo de 180 dias, a partir do trânsito em julgado, para que as empresas cumpram a obrigação de não terceirizar, sob pena de multa diária de R$ 1 milhão. A sentença tem o total de 180 páginas.
O montante das indenizações por dano social (danos morais coletivos), num total de R$ 400 milhões, será repartido em quatro partes iguais entre as instituições Hospital do Câncer de Barretos (Fundação Pio XII), Fundação Hospital Amaral Carvalho de Jaú, AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente) – sede São Paulo, e Hospital Carlos Fernando Malzoni, de Matão. Desse total, a Cutrale pagará R$ 150 milhões, a Louis Dreyfus R$ 55 milhões, a Citrovita R$ 60 milhões e a Fischer R$ 135 milhões.
As produtoras de suco ainda terão de pagar R$ 40 milhões por abuso do direito de defesa (também conhecido como litigância de má-fé) e ato atentatório ao exercício de Jurisdição, com destinação, em partes iguais, às instituições APAE de Matão, APAE de Araraquara, APAE de Bebedouro e APAE de Taquaritinga. Do total, R$ 15 milhões são para a Cutrale, R$ 5,5 milhões para Louis Dreyfus, R$ 6 milhões para Citrovita e R$ 13,5 milhões para Fischer S/A.
A Sucocítrico Cutrale deverá pagar, ainda, R$ 15 milhões por “assédio processual”, a ser revertida para campanha institucional educativa, com o objetivo de ressaltar “a importância do Ministério Público do Trabalho na defesa dos direitos coletivos dos trabalhadores”.
O juízo observou má-fé das empresas na condução processual, pois insistiram com o ingresso de recursos e outros meios que, segundo ele, “retardaram” o processo, todos levantando suspeitas sobre a juíza substituta, que presidiu a audiência de instrução.
“Se as reclamadas continuam insistindo na tática de retardar a prolação da sentença com a tentativa de arguir a suspeição da douta juíza substituta que me antecedeu, então sentencio eu, na condição de juiz titular da Vara de Matão e gestor responsável por essa unidade judiciária”, escreveu o magistrado.
A sentença proferida pela Justiça de Matão pode ser responsável pela contratação direta de mais de 200 mil trabalhadores pelas indústrias, que respondem atualmente por 98% das exportações brasileiras e por 81% de market share no mercado mundial de sucos processados, segundo a CitruBR – Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos. Ainda segundo a Associação, o Brasil produz 33% da laranja mundial, sendo que apenas “20% do fornecimento de frutas para os grandes produtores de suco vem de suas próprias plantações”.
“Para que fique bem claro e não reste a menor sombra de dúvida: a produção e a colheita da fruta fazem parte da atividade-fim da indústria de suco, que não se limita a comprar “matéria-prima”, como insistem as reclamadas. Detalhes como o grau de maturação e o teor de açúcar são fundamentais para que as empresas consigam elaborar o seu produto final, razão pela qual as reclamadas interferem diretamente na produção dos citrus junto aos fornecedores”, explica o magistrado na sentença.
“Na prática, a indústria impõe aos proprietários rurais toda a responsabilidade social pelo trabalho humano inerente às etapas de plantio, colheita e transporte dos frutos, mas reserva para si a triagem dos pomares e o fluxo de entregas, de modo a atender tão-somente as conveniências de sua linha de produção. Quando adquire as frutas cítricas cultivadas pelos produtores rurais da região e a estes repassa –por força de contrato– a colheita e o transporte, as reclamadas assumem posição privilegiada diante de uma dinâmica empresarial engendrada com o único e inequívoco propósito de lhe tirar das costas a responsabilidade que deriva de sua atividade social”, acrescenta.
“A mudança do sistema “fruta no pé” para “fruta posta na indústria” operada na década passada objetivou, apenas, escamotear as responsabilidades dos grupos industriais, inclusive abrindo campo para a atuação fraudulenta de pseudocooperativas e empresas interpostas que praticam a marchandage. A constatação óbvia, sabida e consabida por todos os que acompanham a realidade da citricultura, e que absolutamente nada mudou na dinâmica perversa desse processo produtivo injusto e concentrador, já que a indústria continuou a determinar, como sempre fez, o conteúdo da atividade agrícola, cabendo ao produtor rural papel meramente figurativo”, completa o juiz Renato da Fonseca Janon.
A relação das indústrias de suco com a terceirização irregular teve início há mais de uma década, quando se formaram diversas cooperativas de mão de obra para realização da colheita da laranja.
Apesar da existência legal das empresas formadas por trabalhadores da citricultura, provou-se por meio de reclamações trabalhistas e investigações de instituições como o Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que havia fraude na constituição das cooperativas, uma vez que as tomadoras – as indústrias – se mostravam ativas no processo de comandar a demanda da colheita, ou seja, as fábricas de suco contratam com os proprietários rurais e estabelecem a quantidade de matéria prima a ser fornecida, assim como o período do ano em que isso deve ocorrer.
“É fato notório, de repercussão nacional, que as indústrias agem como empregadoras dos trabalhadores da colheita de laranja, mas se eximem de qualquer responsabilidade trabalhista decorrente de suas atividades econômicas”, explicam os procuradores responsáveis pela ação.
Na sentença, o magistrado afirmou que a pretensão do MPT encontra-se” muito bem fundamentada e amparada em exaustiva prova documental “.
Histórico
Antes do surgimento das cooperativas fraudulentas, eram as próprias indústrias que se responsabilizavam diretamente pela colheita. Após uma série de reclamações de trabalhadores rurais “cooperados” – na verdade, contratados -, o Judiciário Trabalhista posicionou-se favorável ao pagamento de indenizações, verbas devidas e à regularização das contratações no setor da citricultura, com a declaração de vínculo empregatício com as fabricantes de suco, o que alterou o panorama no campo, com a diminuição gradativa, na última década, da utilização das cooperativas como meio para chegar à terceirização ilícita.
Antes do surgimento das cooperativas fraudulentas, eram as próprias indústrias que se responsabilizavam diretamente pela colheita. Após uma série de reclamações de trabalhadores rurais “cooperados” – na verdade, contratados -, o Judiciário Trabalhista posicionou-se favorável ao pagamento de indenizações, verbas devidas e à regularização das contratações no setor da citricultura, com a declaração de vínculo empregatício com as fabricantes de suco, o que alterou o panorama no campo, com a diminuição gradativa, na última década, da utilização das cooperativas como meio para chegar à terceirização ilícita.
Apesar do fim iminente das cooperativas de fachada, verificou-se, como evolução aos meios convencionais de contratação, o surgimento de sociedades, empresas de pequeno porte e microempresas prestadoras de serviços no ramo de colheita, geralmente compostas por ex-presidentes das cooperativas e empreiteiros de mão de obra, popularmente chamados de “gatos”.
As empresas recém-surgidas contribuíram para precarizar ainda mais o trabalho dos colhedores, que viam seus salários diminuírem e suas condições de trabalho piorarem ainda mais nas terras de proprietários rurais. Acrescentando à forma irregular de contratação de trabalhadores, também são lembrados os rurais avulsos, que eram cedidos para prestar serviços à indústria, sempre de forma direta, por sindicatos e associações, o que foi igualmente repudiado pela Justiça do Trabalho após uma série de processos que tramitaram em face dos empregadores e das próprias indústrias, cujas conclusões apontaram a responsabilidade das grandes fabricantes de suco.
Após os acontecimentos dos últimos 10 anos, o Ministério Público do Trabalho (MPT) decidiu instaurar, em 2007, um Procedimento Promocional (Promo), para investigar amplamente o setor da citricultura, em todo o âmbito do estado de São Paulo.
No Promo, posteriormente convertido em inquérito civil, vários procuradores atuantes na 15ª Região, que compreende 599 municípios do interior paulista, se uniram para chegar a uma solução quanto ao oferecimento de melhorias das condições de trabalho dos colhedores de laranja.
“No período compreendido pelas 3 últimas safras, verificamos uma piora significativa nas relações de trabalho no campo, com casos em que o trabalhador recebe menos do que 1 salário mínimo, sem equipamentos de proteção para executar a colheita e sem condições mínimas de segurança no meio ambiente de trabalho. Em todo esse tempo, em nenhum momento, as indústrias assumiram quaisquer responsabilidades trabalhistas, ignorando veementemente as reivindicações de associações de citricultores e das próprias autoridades que regem a matéria trabalhista”, afirmam os procuradores.
Nesse contexto, a primeira medida adotada pelos membros do Promo foi designar audiência administrativa para elucidar algumas questões referentes à terceirização e propor a contratação direta de trabalhadores, já que, no entendimento do MPT, a responsabilidade nas relações de trabalho com colhedores de laranja, seja em terras de terceiros ou em terras próprias ou arrendadas, sempre foi das indústrias de suco.
As quatro empresas se manifestaram favoráveis a uma discussão, no entanto, seus representantes levaram a questão para a diretoria das fábricas. Paralelamente, a fiscalização do trabalho reuniu-se com proprietários rurais e fizeram ações de campo para coibir as irregularidades no tocante às contratações terceirizadas – as quais nunca se mostraram de fato lícitas, uma vez que as indústrias sempre diziam quanto seria colhido e quando haveria a colheita.
As ações continuaram em 2008, quando o MPT ingressou com ação civil pública na Vara de Taquaritinga, pedindo a retomada da colheita de laranja, após a ordem de paralisação emitida pelas indústrias, o que poderia gerar milhares de demissões. A Justiça concedeu a liminar ordenando o retorno ao trabalho, mas um mandado de segurança impetrado pelas empresas impediu sua continuidade. O processo permanece em julgamento, no entanto, sem que a Cutrale seja acionada juntamente com as outras 3 empresas, após um acordo no valor de R$ 500 mil com o MPT, revertido no oferecimento de capacitação profissional a colhedores de laranja.
“Chegando à safra 2009/2010, também reputada como mais problemática, ante as condições climáticas e financeiras desfavoráveis, as empresas permanecem sendo responsáveis pelo ponto de maturação e pela quantidade de frutas a ser colhida, relativas a safras já adquiridas contratualmente, o que, na visão do MPT, constitui o vínculo empregatício com os trabalhadores”, dizem os procuradores.
Sem obter o ajustamento de conduta das indústrias, o MPT ajuizou a ação civil pública em 2010. “A pretensão do MPT, quanto à mudança formal das inúmeras relações de trabalho estabelecidas na safra citrícola, sempre levando em conta o interesse público, está em harmonia com o anseio de centenas de milhares de trabalhadores, dos milhares de proprietários rurais, do MTE, da Justiça do Trabalho e, sobretudo, da lei”, finalizam os procuradores.
Cabe recurso no Tribunal Regional do Trabalho de Campinas.
Processo nº 0000121-88.2010.5.15.0081 ACP VT Matão
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