Por Pedro Galindo em 26 março, 2013
Em tempos de “modernidade” e globalização, há uma grande confusão em torno de alguns conceitos relativos à nacionalidade e sua submissão aos valores do chamado capitalismo global: em todo o mundo, discute-se a questão da comercialização de elementos pertencentes ao patrimônio imaterial. Um desses valores é a identidade cultural de um povo, resultado direto da intersecção entre seus fatores geográficos e históricos, construído ao longo de séculos.
Assim, a cultura de um país é representada por elementos como idioma, crenças, moral, produção intelectual e costumes, tais como práticas esportivas tradicionais. Paixões como a do indiano pelo críquete e a do venezuelano pelo beisebol são elementos unificadores, capazes de fazer aflorar a nacionalidade e interferir diretamente no cotidiano do país, nas mais diversas esferas. No caso do Brasil, é exatamente isso que o futebol representa para o seu povo, numa escala talvez única em todo o mundo.
O brasileiro, via de regra, é apaixonado por futebol. E é reconhecido no mundo todo por essa paixão. O Brasil é o detentor do maior número de títulos mundiais no esporte, e possui um futebol diversificado e riquíssimo. São milhares de clubes espalhados por um país de proporções continentais, e vários deles movem multidões de fiéis seguidores. O esporte, trazido da Inglaterra, encontrou no Brasil terreno fértil para enraizar sua dinâmica e até mesmo romper com suas origens elitistas e racistas. Foi abraçado pelo brasileiro – assim como também vem sendo, por diversas vezes, usado como “circo” para adestrá-lo. Mesmo com toda a relevância e o inequívoco status de patrimônio cultural nacional, há décadas o futebol brasileiro vem sendo guiado por indivíduos que o subjugam a interesses comerciais e até mesmo pessoais, sob o (falso) pretexto de que não precisam dar satisfações a um povo que sempre acompanhou fervorosamente o esporte.
Futebol para poucos
Desde a década de 50, a Confederação Brasileira de Futebol se tornou um feudo, presidido por João Havelange e restrito aos seus chegados. Em 1989, assumiu a presidência da instituição Ricardo Teixeira, genro de Havelange, que se manteve no poder durante incríveis 23 anos. Bombardeado por denúncias de corrupção (com fartura de provas), só saiu do cargo quando o “mar de lama” atingiu-lhe o pescoço. Não para a cadeia ou para os tribunais, mas sim para uma “dura” vida de exilado em Miami. Ainda assim, sob intensa pressão, conseguiu deixar ao povo brasileiro uma pesada herança maldita: seu sucessor, José Maria Marin. Com o exílio de Teixeira, do dia para a noite, a grande mídia cessou os ataques e investigações contra o ex-presidente e a instituição, como se seu sucessor não fosse homem de sua extrema confiança.
Entretanto, Marin não conseguiu passar muito tempo longe dos holofotes, graças à sua própria postura como presidente da instituição. Autoritário – e nem tinha como ser diferente -, ele tem dado várias mostras de que sequer passa perto de possuir o gabarito necessário para ser o responsável por tão importante patrimônio do povo brasileiro. Infelizmente, essa constatação não é surpresa para qualquer um que conheça seu nebuloso passado.
Afinidades ideológicas
O atual presidente da CBF tem longa trajetória na política paulista. Filho de imigrantes espanhóis, Marin nasceu em 1932 e em 1955 se formou em Direito, pela USP. Para custear os estudos, deu início a uma rápida (e apagada) carreira de jogador de futebol: foi ponta direito, durante dois anos, no São Paulo Futebol Clube. Pouco depois de sair da faculdade, começou suas atividades na política. Filiou-se ao PRP (Partido da Representação Popular), sigla fundada pelo protofascista Plínio Salgado.
O programa ideológico do partido diz um pouco sobre o caráter “democrático e tolerante” do atual presidente da CBF: a sigla era a face institucional da Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento que flertava com alguns dos principais valores do fascismo italiano – e chegou a ser financiado pela diplomacia de Mussolini. Além disso, em alguns municípios, a AIB chegou a dividir sua sede com o Partido Nazista. Durante a ditadura de Getúlio Vargas, membros da AIB elogiavam a perseguição do governo aos militantes de esquerda – quando não os perseguiam eles mesmos.
Terminado o período do Estado Novo, o PRP foi fundado e teve algum espaço no cenário político brasileiro, conseguindo eleger vários representantes. Até que, em 1964, o golpe militar extinguiu a ele e a todos os outros partidos brasileiros. Boa parte dos membros do PRP encontrou espaço para seguir na política dentro da Aliança Renovadora Nacional – ARENA, o partido da ditadura. Incluindo, é claro, o insigne vereador Marin, que viu sua carreira política decolar com a mudança.
Tempos biônicos
Já em 1969, Marin foi escolhido presidente da Câmara de Vereadores de São Paulo. Depois, em 1971, elegeu-se deputado estadual, permanecendo no cargo durante oito anos. Durante este período, se destacou por proferir inflamados discursos contra os comunistas e demais militantes de esquerda, além de reverenciar a atividade de alguns dos próceres da repressão, como o delegado Sérgio Paranhos Fleury, líder do que ficou conhecido por Esquadrão da Morte e condecorado pelo Exército com a “Medalha do Pacificador” (sic) por suas ações durante a “guerra subversiva”.
Um dos seus discursos mais célebres na tribuna da Assembleia ocorreu em 9 de outubro de 1975, quando ele inflamou seus pares em busca de uma “providência” para a “subversão” que tomava conta da TV Cultura (Canal 2). Nas palavras de Marin, a imprensa paulista apresentava “apenas misérias, problemas, mas não soluções”. Por isso, aproveitou para fazer um apelo ao Governador: era preciso “mais do que nunca, uma providência, a fim de que a tranquilidade volte a reinar não só nesta casa, mas principalmente, nos lares paulistanos”. Quinze dias depois, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultulra, se apresentava pessoalmente na sede do DOI-Codi para prestar “esclarecimentos”. Não saiu de lá com vida. Após horas de tortura, Vlado foi “suicidado” por estrangulamento. Sua morte gerou grande comoção na sociedade, e seu funeral reuniu milhares de paulistanos de luto por mais uma vida que se esvaía nas mãos do regime do qual fazia parte o então deputado Marin.
Pouco depois, em 1978, José Maria Marin caminhava para o ápice de sua carreira política: foi apontado vice-governador do Estado de São Paulo para a gestão de Paulo Maluf, que se notabilizou pela colaboração com a repressão mesmo num período caracterizado pela distensão e pela chamada Lei de Anistia, promulgada em 1979. Neste ano, Maluf regularizou a situação de um imóvel cujas instalações eram usadas para a prática de torturas pelo Exército. O governador se notabilizou também por intervir na eleição para Reitor da UNICAMP, quando desconsiderou o vencedor Paulo Freire, eleito pela comunidade acadêmica, e indicou o 6º da lista de votados, Aristodemo Pinotti, mesmo após intensa manifestação em contrário dos estudantes da universidade.
Já em 1982, Maluf abandonou o cargo para se candidatar a deputado federal. Com isso, Marin se tornava governador, ocupando o cargo durante dez meses. Depois de décadas se posicionando do lado “certo” (para quem tem ganas de poder, o que pode ser mais acertado do que se aliar aos poderosos?), Marin chegava, então, ao auge de sua vida pública. Apesar de durante este período ter assinado o decreto que extinguiu o DOPS, ele mais uma vez enfrentou algumas denúncias que sempre acompanharam sua trajetória: autoritarismo e truculência nas ações de repressão policial. A sua passagem pelo Palácio dos Bandeirantes foi relativamente discreta, mas ficou marcada por um episódio ocorrido, digamos, aos 45 minutos do segundo tempo. No ato da posse do seu sucessor, o oposicionista André Franco Montoro, Marin foi intensamente vaiado por uma multidão de cidadãos paulistas que comemoravam o fim do seu biônico e opaco governo.
Com a volta da democracia, Marin fatalmente perderia espaço no espectro político: sempre esteve ao lado dos que estavam saindo de cena. Ainda governador de São Paulo, planejou sua fuga do ocaso: acumulou a função de presidente da Federação Paulista de Futebol, sucedendo Nabi Abi Chedid. Comandou a instituição de 1982 até 1988. Uma sequência óbvia para sua trajetória política: foi no esporte, último bunker do autoritarismo no país (que ainda hoje permanece firme), que Marin encontrou terreno para suas aspirações de poder. O que poucos conhecem, entretanto, é como se deu esse processo de acúmulo de cargos, que deveria ser presença obrigatória em qualquer cartilha sobre mau uso de dinheiro público.
Uma federação para chamar de sua
No seu período como governador do Estado, José Maria Marin resolveu disputar as eleições para presidente da FPF. Seu concorrente era Nabi Abi Chedid, que tentava se reeleger, tinha o apoio de boa parte dos clubes filiados. Mas não contava com as cartas que Marin tinha na manga. Com a chave dos cofres do Estado, o governador deu suas canetadas e no dia 14 de dezembro (atente bem, leitor: dezembro!) de 1982, a Secretaria de Negócios de Esporte e Turismo recebeu uma suplementação de verba de 44 milhões de cruzeiros. Quase o total do que havia sido gasto em todo o ano. Era tanto dinheiro, que a secretaria devolveu 19 milhões aos cofres públicos no fim do exercício. Durante os 17 dias finais do ano, uma verdadeira farra: ligas e clubes amadores receberam um total de Cr$ 16.826.000,00 em dinheiro vivo. Tudo usado para promover festas, churrascos e compra de material esportivo. Além disso tudo, com o dinheiro da secretaria ainda foram distribuídos 7.480 jogos de camisa 7.671 bolas para o futebol de campo e 1.000 jogos de camisa e 4.000 bolas de futsal.
Chedid, com medo do poderio financeiro de seu rival, resolveu abrir os cofres da federação e liberou mais de 64 milhões de cruzeiros, em empréstimos, a clubes e ligas, além de ter empregado mais de 16 milhões para comprar troféus, bolas e uniformes, inclusive fazendo doações sem recibo. Tarde demais. Depois de um processo eleitoral de muita baixaria e acusações de “corrupto” e trapaceiro” dos dois lados, Marin conquistou a maioria dos votos e elegeu-se presidente. Anos depois, Chedid assumiria o cargo de vice-presidente da FPF, só para confirmar que nenhum dos dois estava realmente preocupado com a integridade moral do concorrente.
Marin permaneceu à frente da FPF até o ano de 1988, e conseguiu articular seu prestígio numa escala nacional. Ao longo deste período, participou em 1985 da coordenação da campanha (vitoriosa) de Jânio Quadros para prefeito da capital paulista, e foi o chefe da delegação brasileira na Copa de 86. Neste mesmo ano, candidatou-se a senador pelo PFL, mas descobriu que se eleger com o voto popular é um pouco mais complicado. Seu capital político derreteu: ele ainda tentou se candidatar a prefeito de São Paulo pelo Partido Social Cristão, em 2000, mas obteve apenas 0,18% dos votos válidos.
O trono supremo cai no colo
Após o período na Federação Paulista, Marin praticamente deixou a vida pública, saindo um pouco do ostracismo na eleição para prefeito em 2000. Oito anos depois do pífio desempenho, voltou à vida de cartola e assumiu, na CBF, a obscura função de vice-presidente regional para o Sudeste. Os holofotes se voltariam sobre ele em 25 de janeiro de 2012, num episódio tão bizarro que chega às raias da compulsão: depois da final da Copa São Paulo de Juniores, Marin entrou no campo para participar da premiação dos atletas do campeão Corinthians. Ficou responsável por colocar as medalhas no peito dos jogadores. Eis que, surpreendentemente, o nosso vice-presidente do Sudeste resolve, com pouca discrição, enfiar uma das medalhas no bolso do paletó. O episódio rendeu-lhe o singelo apelido de Zé das Medalhas, e foi com ele que José Maria Marin voltou a ser pessoa pública.
Enquanto o vice-presidente chamava a atenção por acontecidos bizarros, o presidente Ricardo Teixeira vivia seus últimos dias à frente da instituição. Cercado por denúncias de corrupção, deixou o cargo e fugiu para os Estados Unidos. Por ser o mais velho dos vice-presidentes, Marin assumiu o trono. Primeiro, de forma interina, depois definitivamente. Chegou ao poder prometendo um mandato de continuidade para uma “belíssima administração” (palavras suas, no “Bem, Amigos!” da Sportv) de seu antecessor. E de fato, algumas práticas continuaram: menos de dois meses depois de sua posse, seu salário saltou de R$ 98 mil para R$ 160 mil. Já na esfera esportiva, resolveu fazer algumas mudanças: mesmo com uma sequência de sete jogos de invencibilidade e com o título do Superclássico das Américas, Marin resolveu demitir o treinador Mano Menezes no momento em que a seleção começava a apresentar evolução nítida. Contratou, em um ato marcado por um discurso nacionalista digno do “Ame-o ou deixe-o” do qual foi adepto, uma nova comissão técnica que ainda não venceu. A um ano de sediar o Mundial, os brasileiros veem uma Seleção de volta à estaca zero.
O episódio do “gato”
Outro episódio bizarro protagonizado pelo presidente foi contado por Juca Kfouri, jornalista que dispensa apresentações. Um vizinho de José Maria Marin contou-lhe que, há algum tempo, vinha estranhando o alto valor de sua conta de energia. Um belo dia, solicitou à companhia responsável uma análise de seu consumo, e descobriu que estava pagando não só a sua energia, mas também a do douto presidente. A última novidade sobre a conduta do presidente foi divulgada na semana passada, pelo Deputado Romário, que vem fazendo intensa e brilhante campanha contra a corrupção na CBF: uma gravação em que Marin aparece falando sobre um esquema que poderia colocar a ele e a Marco Polo del Nero, presidente da FPF, na cadeia. Ninguém sabe ainda do que se trata o episódio, apesar de haver suspeitas relativas a uma máfia de ingressos. São causos que se somam a outras atitudes abomináveis do presidente, e expõem, com clareza, a falta de integridade moral deste que hoje é o responsável não só pelo futebol brasileiro, mas também pela imagem que o Brasil passará ao restante do mundo sediando um Mundial cujo comitê organizador ele também preside.
Dentro e fora de campo, o futebol brasileiro se encontra em frangalhos. E nem poderia ser diferente, já que há décadas é administrado por dirigentes que conseguiram roubar do brasileiro um de seus grandes patrimônios. Transformaram uma paixão nacional em apenas mais um negócio lucrativo – para si.
* Fonte: Acervo da Revista Placar.
Toda a credibilidade desta matéria é do grande parceiro,Onde voce le neste link http://www.doentesporfutebol.com.br/2013/03/26/dossie-marin-a-saga-de-um-inimigo-da-democracia/
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