segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Quadrilha vendia por cerca de R$ 90 mil vagas em faculdades de medicina


Segundo o Ministro da Educação, os alunos envolvidos sofrerão punições acadêmica


Uma quadrilha agia em seis estados brasileiros, vendendo vagas de Medicina, a carreira mais concorrida do país. Não precisava nem estudar: era na base do pagou, passou. A reportagem é de Giuliana Girardi e Walter Nunes.
A oferta era clara.
Homem: Tudo primeiro lugar é nosso. A gente arrebenta tudo que é prova.
De um esquema ilegal.
Mulher: As faculdades que a gente coloca é porque a gente sabe que o aluno não vai ser pego.
E quem topava pagava caro.
“A vaga numa faculdade de medicina custava entre R$ 60 mil e R$ 90 mil”, afirma o delegado da Polícia Federal Alexandre Braga,
“Você vê uma pessoa que não merece passando na sua frente, é horrível isso”, diz um estudante de medicina.
O jovem não quis mostrar o rosto por medo: foi convidado a participar de um esquema fraudulento, mas diz que  recusou. No ano passado, ele prestou vestibular em seis faculdades em busca de um sonho: estudar medicina, a carreira mais concorrida do país.
Para quem se prepara a sério para as provas, a concorrência dos fraudadores é desleal.
“Você vai prestar um vestibular que é 50 candidatos por vaga, na verdade é 100 candidatos por vaga. Porque metade das vagas são vendidas”, conta o estudante. “É comum. Todo mundo sabe. O ponto eletrônico é o que mais oferece.”

Aparelhos eletrônicos escondidos, estudantes despreparados e dezenas de milhares de reais comprando o que não deveria estar à venda. Vale tudo para entrar em algumas faculdades de Medicina no Brasil.
Uma dessas quadrilhas, descoberta no interior de São Paulo, vendia vagas em seis estados: São Paulo, Mato Grosso do Sul, Piauí, Maranhão, Goiás e Rio de Janeiro. Por telefone, eles negociavam com pais e candidatos.
Mulher: A gente faz isso há 15 anos já.
O Fantástico mostra essas conversas com exclusividade. Em um telefonema, uma mulher apresenta o golpe para um pai..
Mulher: O senhor tem uma filha, né?
Pai: Exatamente.
Mulher: Isso. Ela quer medicina, né?
Pai: Medicina.
Mulher: Eu tenho Fernandópolis.
Pai: Fernandópolis?
Mulher: Interessa?
Pai: Interessa.
Mulher: A gente pode colocar ela ou em Fernandópolis ou em Taubaté.
A vendedora faz propaganda.
Mulher: É uma coisa impressionante. Não tem como não entrar. Vai fazer a prova tranquilamente. Vai dar pra passar o gabarito completo e não tem risco para o aluno.
Agora é que vem a conta.
Pai: E valor?
Mulher: Então, o valor está 60 mil.
Fechado o acordo, os candidatos recebiam treinamento. Mas não era para as matérias que caem no vestibular. Era para a fraude.
Homem: Eu vou dar para o menino um ponto de escuta. Ele é maior um pouco que a cabeça de um cotonete, ele é de silicone, ele é transparente. Vai ensinar tudo como se usa, como não se usa.
A polícia apreendeu com o grupo pontos eletrônicos. Quem usava tinha que esconder todos os fios e o receptor de sinal. Colocar tudo embaixo da blusa, da camisa, para nada aparecer. Aí o candidato colocava o ponto eletrônico, ficava bem escondido também, para receber todas as instruções.
Quando a fiscalização apertava, o ponto não era usado. As respostas chegavam por mensagens de celular, lidas no banheiro em aparelhos escondidos. As informações corretas eram encaminhadas por estudantes de medicina que faziam parte da quadrilha. Eles receberam um apelido no grupo: pilotos. Cabia a eles resolver as provas.
Mulher: São 10 gênios fazendo as provas lá dentro. Geralmente, eles gabaritam tudo.
“São pessoas às vezes com o QI acima da média. Especializadas em determinadas matérias e fazem a prova muito rapidamente e transmitem os gabaritos”, explica o delegado da Polícia Federal Alexandre Braga.
É o que mostra outro trecho, gravado após uma prova da Uniceuma, no Maranhão, em novembro de 2011.
Estudante: Fala.
Homem: Anote bem aí. A partir da 16.
Estudante: Manda.
Homem: 16, letra B. Bola.
Estudante: Bola.
Homem: 19, C.
Na quadrilha, cada um tinha uma tarefa. Alguns negociavam com os pais e os candidatos. Eram chamados de corretores. E outros tinham a missão de treinar os alunos. Os treinadores explicavam o passo a passo do golpe. Ensinavam os estudantes a usar o ponto eletrônico e os códigos do celular. Essa conversa foi gravada antes do vestibular da Uniara, em Araraquara, no interior de São Paulo, em 2011.
Mulher: Tá pronta?
Estudante: Tô. Quer fazer o teste?
Mulher: Estamos fazendo agora. Tá montada já?
Estudante: Tô montada.
Mulher: Então, você troca a bateria do pontinho. Se não chegar pelo ponto, vai chegar pela mensagem.
Em um vídeo, um dos treinadores sai de um hotel em São Paulo depois de dar as instruções.
No dia da prova, cada piloto resolvia as questões de apenas uma matéria, para garantir o maior número de acertos possível. Eles saíam rapidamente da sala. Em seguida passavam os gabaritos por telefone para uma central em Goiânia.
Imagens mostram três pilotos reunidos depois de uma prova na Faculdade Anhembi Morumbi, em São Paulo, em dezembro de 2011.
As respostas eram mandadas para uma quarta categoria de fraudadores: os assistentes. E eram eles que repassavam tudo para os vestibulandos envolvidos.
Para a polícia, o coordenador do grupo é Luciano Cançado, médico, clínico geral, de 39 anos. Luciano tinha alugado uma casa em um bairro de classe média de Goiânia, onde morava e também se reunia com os integrantes da quadrilha, segundo a polícia. Eles definiam os detalhes do esquema de fraude. Procuramos o doutor Luciano em dois endereços que aparecem nos relatórios da polícia. Ninguém nos atendeu.
Luciano Cançado trabalha como médico no Hospital Municipal de Jaraguá, cidade que fica a mais de 100 quilômetros de Goiânia.
Giuliana Girardi, repórter do Fantástico: Doutor Luciano Cançado está dando plantão hoje aqui? Ele já foi embora?
Funcionário: Não sei se ele está descansando.
Em seguida, a direção do hospital confirmou que ele já tinha ido embora. Ligamos para Luciano.
Giuliana: Segundo a Polícia Federal de Araraquara, você era o chefe. Você nega isso?
Luciano: Eu nego, Giuliana, eu nego. Eu vou mandar o meu advogado te ligar.
De acordo com o diretor do hospital, no dia seguinte à conversa, Luciano Cançado pediu demissão. 
O advogado dele, Sérgio Miranda de O. Rodrigues, falou ao Fantástico. “A defesa vai aguardar a conclusão do inquérito para se apontar quais são os fatos especificamente apontados ao meu cliente para que então possa se posicionar. Não há participação, não há comprovação de venda do meu cliente em vagas de medicina”, disse ele.

A polícia diz que tem provas suficientes. Extratos bancários com depósitos na conta de Luciano e confissões de integrantes da quadrilha.
“Nós tínhamos o mentor, a pessoa que desenhou, arquitetou esse esquema, sediada em Goiânia. Um médico em Goiânia”, diz o delegado.
Além de Luciano, a polícia prendeu os corretores, os assistentes, os pilotos e os treinadores. Ao todo, 15 envolvidos.
Eles estão sendo investigados desde 2011. O Dr. Luciano já foi detido duas vezes. No fim do ano passado ele foi preso em outra operação de venda de vaga em vestibular.

Luciano e o seu grupo estão em liberdade. Eles já foram indiciados e devem responder por três crimes.

“Pelo estelionato, pela divulgação de segredo, de sigilo de concursos públicos ou vestibulares e a formação de quadrilha”, detalha o delegado Alexandre Braga.

Em Goiânia, procuramos quatro indiciados por pertencer à quadrilha: o casal Marcos José Nunes de Souza e Ana Cândida Lima Souza, Filipe Marquez Belo e Melina de Souza Medeiros. Fomos aos endereços que constam no relatório da polícia. Não encontramos ninguém. Por telefone, eles não quiseram falar.
O Fantástico entrou em contato também com outros oito acusados: Jovina Cecília da Silva Gonçalves, Annie Jackieline Montenegro de Souza e Silva, Lara Cristina de Souza Cançado - irmã de Luciano -, João Paulo Rosilho, Carlos Eugênio Batista Meireles, Alisson Patrício Roque, Letícia Aguiar Milhomens e Leonardo Borges da Silva. Mas eles não quiseram se manifestar.
Nossas equipes não encontraram outros dois envolvidos, Clarianne Silva Leite e Ewerton Alves Alagia.
Segundo a Polícia Federal, não há evidências de que as faculdades fossem coniventes com o esquema. Mas pode ter havido falhas na fiscalização.
“O principal elemento que levava as quadrilhas a intervir contra os certames em universidades particulares era a precariedade do sistema de segurança deles”, explica Alexandre Braga.
Em nota, as universidades de Rio Verde, Estácio de Sá, Anhembi-Morumbi e Uninove dizem que usam "detectores de metal" nas provas.
As universidade de Franca e Gama Filho afirmam que, se constatada a fraude, expulsarão os alunos envolvidos.
O centro universitário Uninovafapi e a universidade Ceuma informam que recolhem todos os aparelhos eletrônicos durantes os exames.
A São Camilo afirma que "toma todas as precauções para evitar fraudes nos processos seletivos".
A Uniara informa que "revisa constantemente os procedimentos de sigilo e combate às fraudes".
O grupo Anhanguera Educacional, ao qual a Uniderp pertence, diz que "mantém forte esquema de fiscalização".
A empresa Access, que faz o vestibular da Faculdade Souza Marques, informa que anulou a prova de 42 alunos identificados com fraudes no vestibular de medicina em 2011.
A polícia está fazendo um levantamento agora dos alunos que estão cursando medicina ou já se formaram, mas que foram aprovados porque compraram as vagas. Eles também vão responder criminalmente.
“Que direito tem um cidadão de comprar uma vaga quando dois milhões estão de forma democrática, republicana, se preparando, estudando, disputando pra poder entrar?”, pergunta o Ministro da Educação, Aloizio Mercadante.
Segundo o Ministro da Educação, os alunos envolvidos sofrerão também punições acadêmicas: “Eles vão ser todos identificados, vão ser expulsos da faculdade, os que eventualmente ainda estejam, e se forem formados terão seus diplomas cassados. Porque toda a vida acadêmica deles é uma fraude”.
Conversas do grupo mostram que muita gente pode ter sido aprovada. Os fraudadores debochavam de quem era reprovado.
Homem: Murilo. Desclassificado porque não conseguiu tirar nem 3 na redação.
Homem 2: Que horror.
Homem: Ezequiel. Desclassificado porque não tirou nem 2 na redação.
Nem sempre o esquema fraudulento dava certo. Um candidato chegou a ser detido pela polícia, que encontrou o ponto eletrônico durante uma prova da Uniara, em Araraquara, em São Paulo, em outubro de 2011. É a mãe dele que conta a história para a mulher com quem negociou a vaga.
Mãe de estudante: Você não sabe, Jacke. Queriam levar a gente no camburão. Esperaram ele terminar a prova. Veio todo mundo da reitoria. Pegou ele. Levaram numa sala. Olha, esse menino foi de peito, viu, Jacke?
Mulher: Ô.
Mãe de estudante: Ele não aguentava aquele negócio no ouvido. Ele enfiou até o fundo o negócio pra ninguém ver.
Ela relata como ajudou o filho a se livrar dos equipamentos da fraude.
Mãe de estudante: O reitor falou assim: "Não, não. Você vai pegar seu carro". Nisso, fiz uma limpa no carro. Piquei celular, piquei papel. Tudo que tinha nome, sabe? Aí, ele: "Ai, mãe, tô com dor de barriga”. Nisso, ele arrancou o colar. Esparadrapo, tudo. Jogou na privada e deu o colar pra mim.
Apesar da confusão, no mesmo telefonema, as duas combinam o esquema para o candidato em mais uma prova.
Mulher: Com certeza, ele vai entrar em Mato Grosso. Não tem vistoria, não tem nada. Ah, outra coisa. A redação tem peso zero.
Para o Conselho Federal de Medicina, os estudantes e médicos envolvidos nas fraudes devem ser punidos.
“É um caso prioritariamente de polícia. É importante para nós médicos como ele entrou. Porque é o caráter dele que está em jogo. É a questão ética do médico que comprou uma vaga”, afirma Desiré Callegari, secretário do Conselho Federal de Medicina.
“Ele não está disputando uma vaga, ele está comprando uma vaga, tirando o sonho de muita gente mais capaz que ele”, acusa um estudante.

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