quarta-feira, 8 de maio de 2013

Estado, razão e inversão de valores

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Uma das coisas que mais me choca na discussão sobre violência é a desconexão entre o país que boa parte das pessoas diz querer e o que efetivamente defendem no seu dia a dia. Não percebem que muitas vezes, seus posicionamentos sobre as funções do Estado são absolutamente contrárias ao modelo de país que querem viver.
Novamente, o assunto é a relação entre polícia e pessoas em conflito com a lei. Ao que parece, o Fantástico denunciou uma ação policial em 2012, que acabou com a morte de um traficante, o Matemático. Na operação, foi usada uma metralhadora MAG 7.62, montada no helicóptero da polícia. A arma, por sua natureza, é de uso restrito das forças armadas e pelo que entendi, deve ser (?!) utilizada apenas em combate. Isso porque a chance de existirem balas perdidas é imensa, ainda mais quando instalada em um helicóptero.
Para não soar repetitivo, vou fugir do debate do caso em si. Sim, acho um absurdo o uso de armas pesadas em atuações policiais, ainda mais em áreas urbanas. E sim, acho que se há uma investigação, o policial chefe da operação deve ser afastado. É um procedimento normal em qualquer administração do mundo, ainda mais em áreas ligadas à segurança pública.
Porém, como disse, a reflexão que quero fazer é sobre o sentimento de boa parte das pessoas que acharam um absurdo a denúncia do Fantástico. Cheguei a ver posts nas redes sociais com a frase “completa inversão de valores do Brasil de hoje”.
Este é o ponto bisonho. Existe uma grande parcela de pessoas que acha que estamos divididos em “homens de bem” e “homens maus” (que a polícia costuma chamar de “vagabundo”). Estas pessoas defendem que o “bem” deve triunfar sobre o “mau” e que o Estado deve ser o justiceiro da bondade. Como se fosse um martelo divino, que puna quem saia da linha. Por isso, punir o oficial responsável por permitir uma metralhadora militar em um helicóptero da polícia civil é um absurdo.
Como diria o velho Jack, vamos por partes.
Começando pelo final, se é um crime ou ato de indisciplina o ocorrido, o policial deve ser responsabilizado. Ponto. Sem ações midiáticas, sem alarde, deve responder pelo ilícito. Isso se chama Estado de Direito. Temos uma regra; ela é descumprida; investiga-se o ocorrido; responsabiliza-se – caso necessário – o investigado. Simples assim.
Isso não significa que devamos concordar com a regra porque ela é a regra. Só temos que separar as coisas: uma discussão é a mudança da lei. Outra coisa é a aplicação dela. Em um inquérito sério, rápido e com amplo direito de defesa, a norma deve ser aplicada. Se a defesa entender que a norma está errada, pode (e deve) discutir judicialmente sua aplicação. Se a sociedade achar que a lei tem que ser mudada, deve, sem histeria, discutir isso. A aplicação da regra é da área do Direito. A discussão sobre ela, está na seara da política.
Desfeito esse primeiro nó, sigamos para o que mais me interessa aqui.
Todo mundo que conheço quer um Brasil melhor. Mais justo, mais igual e mais rico. Querem um lugar melhor pra se viver. Aí, quando algo do tipo acontece, reclamam que o Estado “defende os bandidos”, que os “direitos humanos” só servem para “proteger a bandidagem” e que “logo vamos ter até bolsa fuzil”. É a galera do “bandido bom é bandido morto”. Aquele povo que acha que desarmar “os homens de bem” é “deixá-los à mercê dos vagabundos”.
O que não bate nessa discussão é como ter um Estado assassino e ao mesmo tempo viver em paz, num país desenvolvido. Outra coisa que me causa pânico é esse papo de “homem bom” versus “homem mau”. Qual é o grau de “bom” e “mau”? Sonegar imposto é conduta do “homem de bem” e roubar é do “mala”? Beber, dirigir e atropelar meio mundo é coisa de “homem mau”? E só beber e dirigir? Pode?
Essas perguntas são só pra lembrar que todo mundo pode ser bom ou mau, dependendo do dia, hora e lugar. Assim, ao invés de rotular as pessoas, precisamos prestar mais atenção nas condutas. Sem perder tempo dizendo quem é anjo ou quem é demônio, é necessário entender quais são as situações e condutas que permitem que crimes bárbaros aconteçam.
E é aí que o Estado entra. Nossa atual “configuração” do Estado, pode ter milhares de defeitos, porém, talvez sua maior qualidade ser um esforço racional para mediar a violência entre os seres humanos. Por isso, ele deve se focar em políticas públicas e ações práticas que evitem que as condutas aconteçam. E se acontecerem, deve fornecer um método racional e EFICAZ de solução do conflito.
Pois bem. Se o Estado é um esforço racional, nada mais justo que usemos a massa cinzenta para tentar resolver os problemas. Como já disse antes, pensar com o fígado pode ajudar a dormir tranquilo, mas não conheço muitas soluções que tenham saído de lá.
Assim, que tal olharmos para os países que gostaríamos de ser? A polícia deles sai matando geral toda vez que acontece um crime? Aliás, a pergunta serve para qualquer ação estatal. Os países chamados de “desenvolvidos” agem no final do problema ou onde ele nasce? Batem nos humanos “maus” para deixarem os “direitos” livres? Eles colocam alguma diferença entre o “crime do rico” (sonegação) e o “crime do pobre” (roubo)? Será que não é meio ilógico punir o roubo com pena de reclusão de 4 a 10 anos enquanto a sonegação dá detenção de 06 meses a 2 anos? Sonegação não é uma forma de furtar a coisa pública?
É por isso que esta história de inversão de valores irrita. Que tal criarmos uma política decente de controle de armas? E se repensássemos nossa política antidrogas? Quantas vidas vamos poupar? De civis e policiais? Será que vale à pena esta polícia-faroeste, que mata primeiro e nem se preocupa em perguntar? Ao que me lembro, era no oeste americano que as rixas duravam gerações. Um mata o outro. Aí o filho do outro mata o filho do um. É isso que queremos?
A inversão não é de valores. É de prioridades. No médio prazo, precisamos aprofundar a redistribuição de renda (reforma tributária, reforma agrária etc). No curto prazo, precisamos começar a agir nas causas imediatas: ações diretas contra o tráfico de armas, controle à compra de arma por civis (e empresas de segurança) e descriminalização da maconha são só os primeiros passos rumo à diminuição da violência. Enquanto não encararmos isso, vamos continuar assistindo esse banho de sangue. Sangue que tem cor, idade e classe social.

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