O estádio que pode virar uma dor de cabeça (Foto: Divulgação) |
Quando pisar pela primeira vez na Arena Corinthians, o popular Itaquerão, o torcedor do Corinthians enfim terá espantado o último de seus fantasmas: a falta de um estádio próprio. Por trás da festa, no entanto, estará um risco oculto, ou que tem passado quase despercebido, que é a alta conta a ser paga pelo clube no futuro, mesmo que consiga os incentivos fiscais e o repasse do BNDES conforme planejado. A depender de como se desenrolarem os fatos, a dívida pode se tornar um fardo pesado e até prejudicar de forma séria a capacidade financeira do alvinegro por muitos anos.
Orçada inicialmente em R$ 820 milhões, a arena deveria ser construída com R$ 420 milhões oriundos de CIDs (títulos municipais de incentivo fiscal) e R$ 400 milhões de empréstimo do BNDES. O valor final, no entanto, deve passar de R$ 1 bilhão, já que o acordo com a Odebrecht não inclui itens essenciais, como sistema elétrico e de tecnologia. Muito, portanto, para um clube que no melhor ano da sua história, com os títulos da Libertadores e do Mundial, teve superávit de apenas R$ 7,5 milhões.
Ainda que o alvinegro conte com incentivos governamentais, salta aos olhos a diferença entre a capacidade de geração de caixa do clube e o custo final do bem. É mais ou menos como comprar um apartamento de R$ 1 milhão com um salário de R$ 7 mil reais, sem nenhuma poupança para dar de entrada. Para viabilizar um projeto dessa dimensão, o clube faz uso de um modelo consagrado no mercado financeiro, que é o de Project Finance, no qual o fluxo de caixa futuro é usado para cobrir o financiamento, prática comum em investimentos desse porte. A engenharia financeira escolhida permite contornar a falta de capital disponível no momento das obras, mas sacrifica ganhos que o clube terá com a arena por longos anos.
O ponto é se esse esforço para arcar com a dívida impactará o orçamento do departamento de futebol do Corinthians, e portanto a competitividade da equipe nos próximos ciclos. Se isso ocorrer, não será a primeira vez que um clube deixa os investimentos no time em segundo plano para colocar foco no seu estádio. Na década de 90, por exemplo, o São Paulo passou por um longo calvário quando precisou implantar amortecedores no Morumbi.
No caso de Itaquera, já se sabe que, para fazer frente aos compromissos financeiros, o alvinegro cederá seus direitos comerciais futuros ao fundo que administrará o estádio, por 30 anos ou até que a dívida seja quitada. Isso inclui ganhos com naming rights, bilheteria, camarotes e placas de publicidade. A não ser que as receitas geradas com a arena superem em muito as pesadas parcelas da dívida, o Corinthians assume uma desvantagem competitiva importante em relação aos principais rivais por longo período. Afinal, o clube perde capacidade de investir no principal, que é a formação de elenco e das categorias de base.
Desde o início, no entanto, a diretoria corintiana tem se mostrado fortemente otimista com a relação entre investimento e retorno. Em 2011, o diretor financeiro Raul Corrêa chegou a dar declarações de que a receita líquida obtida a partir do estádio poderia chegar a R$ 70 milhões por ano. Nas contas dele, seria suficiente para pagar R$ 40 milhões anuais de parcelas referentes ao empréstimo do BNDES e capitalizar os cofres do clube para bancar grandes contratações. Cálculos feitos a pedido do UOL, todavia, mostram que as parcelas devem chegar a um total de R$ 54 milhões . Ou seja, se a projeção se confirmar, há um saldo positivo de R$ 16 milhões. Menos da metade, portanto, dos R$ 35 milhões gerados de receita com bilheteria no ano passado, quando não havia estádio próprio para gerar renda com outros serviços nem dívidas de obras a serem quitadas.
Nesta quinta-feira, artigo da Folha de São Paulo mostrou uma expectativa do alvinegro, muito mais ousada, de gerar até R$ 291 milhões brutos por ano com a arena. Analistas mostraram que o número parece exagerado. Um deles, Jorge Hori, consultor do Sindicato da Arquitetura e da Engenharia, apontou que sua simulação indica um máximo de R$ 92 milhões, mais um valor pouco representativo com outras receitas consideradas acessórias. Considerando que no ano passado o clube que mais lucrou com estádio foi o São Paulo, com R$ 65 milhões, a conta parece mais realista. Vale aqui um pequeno parentêses: se a nova arena de fato tiver retorno tão alto e certo, como projeta o clube, fica ainda mais difícil compreender o envolvimento de dinheiro público, que seria desnecessário em absoluto, e a ausência de investidores privados, sempre interessados em grandes rentabilidades.
Por mais que o otimismo corintiano se mostre firme e forte, o cenário cada vez mais complexo enseja projeções mais conservadoras. A 5 meses da entrega do estádio, diversas premissas do planejamento financeiro da arena, importantes para o seu bom andamento, ainda não saíram do papel. E quanto mais as coisas fogem do script, mais pressão de gastos no futuro.
Para abater parte de sua dívida, por exemplo, o clube tinha a expectativa de comercializar os naming rights do estádio por um valor robusto (especula-se que na casa de R$ 400 milhões, dividido em parcelas anuais). O mercado, contudo, não mostrou todo esse apetite e a ideia ainda não vingou. Com o apelido” Itaquerão” cada vez mais disseminado, o interesse das empresas certamente diminui, porque é real o risco de os torcedores usarem o apelido e não adotarem o nome oficial. Sem o suporte financeiro dos naming rights, o clube corre o risco de enfrentar um fluxo de pagamento substancialmente mais pesado nos próximos anos.
Ainda há a dificuldade com o empréstimo do BNDES, que até agora não foi viabilizado porque nenhum banco entrou totalmente em acordo com o clube sobre as garantias da operação. A Caixa, patrocinadora do clube, deve assumir esse papel, mas o repasse continua travado. Com o atraso das captações, a empreiteira responsável precisou assumir dois “empréstimos ponte” para iniciar a obra, que totalizaram R$ 250 milhões. Com os juros correndo, o preço final para o alvinegro fica cada vez mais alto. De acordo com a Folha de S. Paulo, o contrato com a Odebrecht reza que o Corinthians deve pagar 10% do preço fixo global do estádio (R$ 820 milhões) cinco dias úteis após o pedido de cada empréstimo ponte. Isso implica uma dívida já contraída com a construtora de R$ 164 milhões.
Por fim, ainda há um desafio com relação à arrecadação com os CIDs, que não deve atingir os R$ 420 milhões. Isso ocorre porque, como só podem ser usados pelos compradores depois da inauguração da Copa, os títulos certamente serão vendidos com um desconto – ou “deságio”. Para piorar, a disponibilização desses ativos também está atrasada e até agora só R$ 156 milhões foram viabilizados pela Prefeitura de São Paulo.
Resumindo, o Corinthians precisa pagar um estádio que custa cerca de R$ 1 bilhão e, com 86% da obras pronta, nenhuma das três principais linhas de captação ou receitas previstas (naming rights, CIDs e BNDES) saiu ou saiu a contento. Adicionalmente, o cenário político e econômico não ajuda. Com a economia andando quase de lado, fica mais difícil gerar receitas nos próximos anos em todas as linhas de negócio, inclusive com bilheteria. Os patrocínios e venda de naming rights também se tornam mais complexos, porque a ordem geral nas grandes empresas é cortar custos e fazer mais com menos. Até uma cartada política parece mais improvável depois que eclodiram as manifestações de junho, com forte orientação contra gastos com a Copa.
Desde as declarações de Correa, sobre as receitas anuais de R$ 70 milhões, tudo mudou para pior. Naquela época a economia vinha de um crescimento de 7,5%; as empresas mostravam apetite por grandes investimentos; não havia empréstimo ponte para encarecer a obra; e não se falava no deságio dos CIDs. Agora, há muitas incertezas no ar, a ponto de o porta-voz do clube, Andrés Sanchez, chegar a ameaçar parar a obra por falta de dinheiro em junho.
É possível que o Corinthians e seus parceiros encontrem saídas para todas as dificuldades que têm se apresentado ao longo da construção da arena. Mas é notável como o clube tem sido obrigado a correr riscos altos e oferecer o que tem e o que não tem para viabilizar o projeto. Com o intuito de destravar o empréstimo do BNDES, chegou a oferecer o Parque São Jorge como garantia. Ou seja, está não apenas abrindo mão de receitas futuras, mas empenhando sua própria casa para rolar o processo.
O passar do tempo vai revelar qual será o impacto do Itaquerão no futuro do Corinthians e se o otimismo da diretoria se justifica, apesar de diversas evidências em contrário. A arena pode ser um legado inestimável ou uma herança maldita, capaz de colocar em xeque a fase de estabilidade e de bonança do clube. A torcida certamente fará uma festa inesquecível na inauguração, mas não perdoará se ficar claro, ao longo do tempo, que o estádio foi erguido às custas de ter um time forte e competitivo. Afinal, torcedor quer estádio, mas quer, acima de tudo, troféus e voltas olímpicas.
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