O poder público não está dando a devida atenção à crescente violência contra indígenas por conta de suas reivindicações territoriais no Sul da Bahia. Apenas se dará conta disso quando mortes e destruição começarem a ser creditadas na conta dos mandatários de diferentes esferas de governo. Pedi a Daniela Alarcon, jornalista e mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília, autora da pesquisa “O retorno da terra: As retomadas na aldeia Tupinambá de Serra do Padeiro, Bahia”, para escrever um relato para este blog sobre o que está acontecendo:
Desde o dia 20 de agosto, a Força de Segurança Nacional está no município de Buerarema, Sul da Bahia, com o objetivo de frear a escalada de violência contra o povo indígena Tupinambá, mobilizado pelo reconhecimento de seus direitos territoriais. Como noticiou o UOL, os ataques começaram na noite de quarta-feira (14), quando um caminhão que transportava estudantes da Escola Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro foi alvejado em uma emboscada. Ninguém foi baleado, mas estilhaços do para-brisas, que se quebrou, feriram dois estudantes. Nos dias subsequentes, não-índios atearam fogo em veículos de órgãos públicos e em um ônibus escolar.
Apesar da presença policial, a violência continua. No sábado (24), indígenas que vivem na zona urbana de Buerarema tiveram suas casas e bens pessoais incendiados. As imagens, que circularam em blogs regionais, são impactantes. Os Tupinambás vêm recebendo ameaças cotidianas e tiveram parte de sua produção agrícola (cacau e farinha de mandioca) roubada; não-indígenas que os apoiam sofreram tentativas de linchamento; comerciantes identificados com os índios tiveram suas lojas atacadas. Por razões de segurança, os indígenas não têm saído da aldeia, o que impede o acesso a serviços de saúde e acarreta significativos prejuízos econômicos, ao impossibilitar a comercialização da produção agrícola.
Disputa territorial - Os recentes ataques inscrevem-se em um quadro de intenso conflito territorial. O processo de identificação da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença teve início em 2004, como resultado de prolongada pressão por parte dos indígenas. Cinco anos depois, a Fundação Nacional do Índio (Funai) aprovou o relatório circunstanciado que delimitou a TI em cerca de 47 mil hectares, estendendo-se por porções dos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una, no sul da Bahia. Descumprindo os prazos estabelecidos legalmente, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, ainda não assinou a portaria declaratória da TI, para que o processo então se encaminhe para as etapas finais. De acordo com dados da Funasa para 2009, cerca 4.700 Tupinambás vivem na área.
Em 2004, os Tupinambás iniciaram o processo de recuperação de seu território tradicional, reocupando terras que lhes haviam sido tomadas. A penetração massiva de não-indígenas no território tupinambá teve início no final do século 19, quando a região tornou-se a principal fronteira agrícola do Estado da Bahia, com o estabelecimento da cultura do cacau. Entre os anos de 1920 e 1940, esse processo se intensificou. Os indígenas que não migraram para as zonas urbanas mantiveram-se em pedaços de terra muito diminutos, ou passaram a trabalhar em fazendas de cacau, em condições extremamente precárias, em alguns casos, inclusive como mão-de-obra escrava.
As ações de recuperação territorial levadas a cabo pelos indígenas – conhecidas como “retomadas de terras” – têm o intuito de pressionar o Estado para fazer o processo de demarcação avançar, mas também são realizadas para resolver problemas concretos das famílias, que em muitos casos viviam em situação de pobreza extrema, passando fome. Além disso, elas atendem a princípios da cosmologia dos Tupinambás: aquelas terras são habitadas por entidades não-humanas conhecidas como “encantados” e os indígenas têm o dever de proteger o território.
Desde o início de sua mobilização, os Tupinambás sofrem intensa violência. Além de terem sido alvos de emboscadas realizadas por ocupantes não-índios, foram vítimas, principalmente entre os anos de 2008 e 2010, de recorrente violência policial, em que se comprovou a utilização de armamento letal, prisões ilegais de lideranças e tortura (com choques elétricos). Representantes do poder público, como o deputado federal Geraldo Simões (PT) e a deputada estadual Ângela Souza (PSC), em declarações à imprensa regional, contribuem para a difusão do preconceito contra os Tupinambás e para a incitação à violência. O radialista Rivamar Mesquita, da Rádio Jornal de Itabuna, também é conhecido por suas frequentes declarações anti-indígenas. Esses fatos motivaram denúncias por parte de entidades como a Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia e a Anistia Internacional.
A ilegal e abusiva demora no processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença levou à proposição, pelo Ministério Público Federal, de ações civis públicas responsabilizando o Estado por não cumprir sua atribuição legal de proteger os direitos indígenas, conforme determinam a Constituição Federal de 1988 e tratados internacionais de que Brasil é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A atual conjuntura política tem se revelado profundamente desfavorável aos povos indígenas e comunidades tradicionais – como se sabe, o governo de Dilma Rousseff mantém estreita relação com lideranças do agronegócio e, recentemente, determinou a paralisação de processos de demarcação de Terras Indígenas em curso.
Campanha - Nesta segunda (26), foi lançada uma campanha pela urgente conclusão do processo de demarcação da TI Tupinambá de Olivença, incluindo um abaixo-assinado. Na ocasião, pesquisadores que atuaram junto aos Tupinambá divulgaram uma carta pública (protocolada junto aos órgãos federais competentes), enfatizando que apenas a finalização do processo demarcatório fará cessar as violações aos direitos indígenas em curso e a tensão na região.
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