Nesta semana, consegui estrear um tema que é fundamental no debate sobre Direito e Desenvolvimento: a corrupção. Já ensaiava aqui e ali alguns pitacos, mas foi nesta semana que comecei mesmo a escrever. Naquele post tratei de dar uma visão geral do que penso sobre o desvio de verbas públicas. Agora, com calma, tentarei aprofundar os pontos que introduzi no texto anterior.
Seguindo a ordem que elenquei no primeiro texto, começo pelas raízes históricas da corrupção endêmica brasileira. Antes, lembro que o subtítulo – a origem de todo o mal – é obviamente uma brincadeira. Enfim. A questão aqui é identificar quais são as origens da corrupção em terrae brasilis.
Como toda colônia, importamos tudo: modelo de Estado, povo, cultura e hábitos. Por isso, entender nossa passividade perante a corrupção pressupõe entender as raízes históricas de nosso comportamento.
Assim, é preciso ter em mente que corromper o agente público (ou ser corrompido por um) pressupõe a ideia de apropriação do bem público para seus próprios interesses. É utilizar o que é de todos para seu próprio benefício (ou de alguém que você queira).
Um exemplo clássico de aproveitamento da sua posição para adquirir vantagens é Pero Vaz de Caminha. Em sua carta noticiando a “descoberta” do Brasil, o português faz o seguinte pedido:
“E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê.”
Aproveitando a notícia da descoberta da Ilha de Vera Cruz, Caminha emenda um pedido. Que o rei de Portugal livrasse seu genro, Jorge de Osório, condenado ao degredo na ilha de São Tomé. Ou seja, Caminha pedia que o rei interviesse para suspender a pena de seu genro. Aproveita o fato de estar noticiando algo fabuloso – a descoberta do Brasil – para pedir um favorzinho.
Esta é a essência da corrupção. É o chamado patrimonialismo, que sucintamente definimos como a indistinção entre a esfera pública e a privada pelo agente público.
Parte constate do que chamou de “dominação tradicional”, Weber cita o patrimonialismo como “dominação exercida com base em um direito pessoal, embora decorrente de laços tradicionais, obedencendo-se ao chefe por uma sujeição instável e íntima derivada do direito consuetudinário”. É o famoso: é assim porque sempre foi assim. A decorrência óbvia deste tipo de pensamento é o entendimento de que a Administração Pública é a extensão do poder do chefe.
Raymundo Faoro, em seu “Os Donos do Poder” parece se valer em parte da premissa weberiana. Digo em parte porque logo na introdução de sua principal obra o autor trata de apontar uma linha de raciocínio própria.
Iniciando sua pesquisa pela formação do Estado português, Faoro indica que o surgimento da organização administrativa daquele país é essencialmente patrimonialista. O exemplo do autor está na distribuição de terras, dada ao sabor dos interesses do rei. O autor lembra que o aparelho burocrático lusitano se desenvolveu a mercê da vontade administrativa do príncipe, onde comumente o aparato burocrático foi capturado por súditos e vassalos.
Outra importante contribuição de Faoro para este debate é a diferenciação entre classe e estamento. Para ele, enquanto a classe é condição sócio-econômica, o estamento é um círculo fechado, que reclama para si privilégios materiais em uma estrutura socialmente desigual. Ainda, o estamento se funda na divisão da sociedade conforme a posição social que as pessoas ocupam. E é sobre uma sociedade estamental que o Estado brasileiro foi organizado.
Nestas condições não fica difícil entender que a cultura de poder público do país está sedimentada sobre a preservação de uma elite estamental, que desde sempre se apropriou do Estado, para que este lhe sirva.
Ao longo de nossa história, o país teve alguns rompantes para criar um aparelho técnico-burocrático que desobedecesse a essa lógica. O primeiro (e mais importante) foi em 1938, no Governo Getúlio Vargas. Durante o Estado Novo, Getúlio cria o DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público. Passo importante para a modernização e desenvolvimento da burocracia brasileira, a fundação do DASP foi acompanhada por algumas inovações, como a ampliação do concurso público. Sim porque antes disso, boa parte dos cargos públicos – como juízes – eram considerados cargos de confiança. Outra inovação de Getúlio, que vale pontuar aqui é a Justiça Eleitoral. Até seu primeiro governo, os responsáveis por apontar os vencedores das eleições nos Estados eram os governadores. Como sabemos, curiosamente os eleitos alternavam sua origem entre Minas e São Paulo e praticamente todo o processo eleitoral era fraudado.
Porém, as raízes estamentais do Estado brasileiro persistem até hoje. Nosso Estado segue apropriado por certa elite. É fato que o tamanho deste estamento aumentou consideravelmente. Com o alargamento da economia nacional e o aprofundamento do capitalismo no Brasil, nada mais natural que o Estado crescesse. Não como deveria, fato. Mas cresceu. E juntamente com ele, cresceu nossa elite estamental.
Este é o quadro sobre o qual será desenhado o Estado brasileiro: agentes públicos patrimonialistas e uma elite estamental que se apropriou das funções do Estado. Os reflexos de ambos são visíveis até hoje. Ainda, não acredito que este quadro seja uma espécie de sentença de morte. É só o nosso ponto de partida. Em um próximo texto, tentarei seguir a linha que adotei anteriormente e buscar formas jurídicas e políticas para mudar este cenário.
em tempo: não entenda este texto como um ataque às raízes lusitanas. Nossa colonização espoliou tanto quanto qualquer outra. Fuja daquela noção de que a colonização dos Estados Unidos, por exemplo, foi muito melhor que a nossa. Ela certamente não foi.
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