De antemão, já aviso que não sou grande entusiasta de uma derrocada mágica do automóvel. Menos pelo amor ao carro e mais pelo fato óbvio que, acabar com o veículo automotor hoje significaria sumir com a maior cadeia produtiva já inventada pelo ser humano. Aliás, como disse um amigo, é bom lembrar que a ideia cadeia produtiva foi inventada para produzi-los e não o contrário.
Símbolo do capitalismo industrial, a linha produtiva automobilística muito possivelmente é a maior empregadora de seres humanos de todas as civilizações. Da pré-produção até sua manutenção, é dela que certamente centenas de milhões de pessoas ganham seu sustento. Da extração de minério até o borracheiro, é incontável a quantidade de mão de obra empregada.
Porém, isso não quer dizer que ache o modelo individualista e “carrocêntrico” viável. Para mim, é mais que óbvio que o mais rapidamente possível teremos que tirar o automóvel da centralidade de nosso modo de produção. Seja pela escassez de matéria prima, pela completa destruição do meio-ambiente ou pelo esfacelamento da vida cotidiana nas grandes cidades, o carro parece mesmo estar fadado a um item de menor importância na vida humana. Bem menor, diga-se.
Basicamente, entendo que não dá para ser muito romântico. O fim do automóvel tem mais relação com a superação ou deste modelo de organização industrial ou do próprio modo de produção capitalista. Como creio não estarmos muito perto da segunda opção, acho mesmo que só a mudança da matriz industrial colocará a carrodependência no museu.
Mas não deixa de ser surpreendente como os porta-vozes da débil elite brasileira não cansam de sua boçalidade. Na ânsia de defender seus amigos e financiadores, o Estadão publicou ontem um editorial lastimável.
Usando do discurso mais senso comum e rasteiro sobre mobilidade urbana, o editorial acusa as medidas de Fernando Haddad e Jilmar Tatto como demagógicas. Segundo o texto, as linhas de ônibus que estão sendo inauguradas estão sendo feitas sem o devido estudo técnico, com fins eleitoreiros. O jornal indaga ainda que o correto seria a criação de mais vagas de estacionamento (!?) para dar condições aos carro-dependentes de se livrarem de seu vício e partirem para o transporte público.
O site cidade para pessoas, em resposta ao editorial, lembrou da frase do ex-prefeito de Bogotá, que quando perguntado sobre a necessidade de mais estacionamentos em sua cidade, apontou não ser obrigação da municipalidade criar vagas com dinheiro público, para veículos particulares.
E o que me interessa aqui é a lógica por trás desta afirmação. Ao apontar que o Estado deve fornecer mais condições ao cidadão para que só daí ele se utilize do transporte público, parte-se de uma afirmativa correta para se construir uma falácia.
É ululante o fato de que cabe ao Estado dar condições para que vivamos em sociedade. Basicamente, o aparelho estatal contemporâneo, além de dar suporte ao nosso modo de produção, serve para isso.
O que esta afirmação esconde é o lugar-comum das críticas ao vento. É de um comodismo infantil culpar apenas o Estado pela condição de São Paulo. Na divisão de responsabilidades, há desde o modelo internacional-desenvolvimentista tocado pela ditadura militar – que inflou a importância do transporte rodoviário e das multinacionais do setor automobilístico – até nosso rebaixamento sócio-cultural, que inclusive por motivos econômicos, vê no carro uma realização pessoal.
E esse debate, por óbvio, o editorial não quer fazer. Não quer entrar no mérito de que muito da subserviência cultural que o brasileiro tem ao carro vem da indução do modelo de desenvolvimento distorcido pela ditadura. Ao abrir as portas para a enxurrada descontrolada de capital internacional, o regime de exceção permitiu que a dominância do planejamento de nosso desenvolvimento ficasse a cargo quase que exclusivamente de suas vontades. Trocando em miúdos, ao entregarmos nosso destino à livre-iniciativa estrangeira, depositamos nossa organização social apenas às empresas. No campo da mobilidade urbana, o reflexo deste tipo de política industrial se resume a carros, carros e mais carros. E este cenário segue intocado por todas as gestões federais desde então.
E pior. Dada nossa condição periférica, temos carros que poluem mais, são mais desconfortáveis e figuram entre os mais caros do mundo, juntamente com as mais rechonchudas margens de lucro para as montadoras. Lucros que voltam para suas matrizes, diga-se.
Mas o principal ponto de discussão não passa nem perto do caricato editorial de ontem. Ao bradar que só o Estado nos salvará, o jornal renega todas as manifestações deste ano, colocando novamente o caráter do brasileiro naquela típica necessidade de ser tutelado. Ou seja, coloca o brasileiro como uma criança mimada, que só faz algo que lhe agrade e não pela necessidade.
É a típica visão da elite tupinambá, que age como se vivesse em uma eterna Casa Grande, com um estoque infinito de serviçais ao seu dispor. É o famoso “ou faz do meu jeito ou eu não ajudo”. “Se o ônibus não estiver equipado com um tapete persa, wi-fi, TV de led e ar-condicionado, eu não ponho meu pé”.
Esse tipo de posicionamento é típico do riquinho mimado. Aquelas crianças que por mais que você faça suas vontades, nunca estarão satisfeita. Não entendem (não querem entender, na verdade), que o movimento pela melhora do serviço público passa pela pressão do usuário e não pela iniciativa estatal. Qualquer estudo de caso aqui, nos EUA ou mesmo na Europa mostra isso. Ou seja, não se melhora o sistema com frases levianas e sim com pressão. Acho que o MPL nos deu algumas boas lições neste sentido.
Por isso, o editorial de ontem parece ter um espelho em sua frente. Demagógica é nossa elite, que nunca pisou num ônibus e agora que está acuada pelas circunstâncias, faz um chororô que não cabe mais em nenhuma aglomeração humana civilizada.
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