quinta-feira, 28 de março de 2013

Por um Estado e uma constituição laica

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Um dos maiores legados do iluminismo à humanidade foi o secularismo. A separação da religião do Estado é uma daquelas conquistas que seus desdobramentos são incalculáveis. Dentro do Direito, por exemplo, podemos dizer que sem a separação do Estado da religião, uma grande quantidade de direitos e garantias possivelmente não existiria.
Outro grande avanço jurídico ocidental foi o chamado controle de constitucionalidade. Como a maioria das inovações processuais, ele não tem uma data e local de nascimento específico. Dos casos mais famosos que deram origem à discussão há um bem conhecido das aulas de Direito Constitucional: o caso Marbury VS. Madison. Em 1808 uma disputa pela nomeação de juízes em tribunais americanos deu início a uma discussão que hoje se desdobra em instrumentos que podem declarar uma lei, decreto ou qualquer ato legislativo como inconstitucional. Hoje, o controle de constitucionalidade possui várias formas. No Brasil as mais comuns são a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADCon).
Qualquer um de nós pode reclamar que determinada lei é inconstitucional. Para isso, além de provar que ela afronta a constituição, é preciso demonstrar que há um prejuízo no caso concreto. Ou seja: você precisa provar que foi efetivamente prejudicado pela legislação que você alega ser inconstitucional.
Acontece que a constituição garante também que algumas instituições podem sozinhas pedir que o judiciário declare a inconstitucionalidade de uma lei, ainda que ela não tenha sido diretamente prejudicada por ela. Só o fato de a legislação ser contrária à Constituição já dá a essas organizações o poder de pedir que ela seja declarada inconstitucional. Na chamada Ação Direta de Inconstitucionalidade a entidade pede que determinada lei seja revogada (total ou parcialmente) por descumprir nossa constituição. Na Declaratória de Constitucionalidade, a entidade vai pedir que a lei seja declarada constitucional.
Não precisa saber muito de Direito pra perceber que este “poder” de pedir que a Justiça declare a inconstitucionalidade de uma lei é algo importante. Tão importante que o artigo 107 da Constituição Federal lista apenas as seguintes entidades como dotadas deste direito:
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV – a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V – o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Pois bem. Eis que ontem, vendo o Facebook vejo que foi aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) nº 99/2011, de autoria do Deputado do PSDB de Goiás, João Campos.
Esta pérola legislativa inclui no rol de entidades capazes de propor a chamada ADIn as “entidades religiosas de âmbito nacional”. Segundo o deputado “Alguns temas dizem respeito diretamente às entidades religiosas. A questão da imunidade tributária, por exemplo, assim como a liberdade religiosa e o ensino religioso facultativo, entre outros. Se tivermos em algum momento alguma lei que fere um desses princípios não teríamos como questionar isso no Supremo. Com a proposta, estamos corrigindo uma grave omissão em que o constituinte incorreu ao deixar essa lacuna.”
Como disse antes, questionar a constitucionalidade de uma lei é uma faculdade dada a qualquer cidadão que em uma situação específica seja prejudicado por ela. No caso das ADIns e ADCons, um dos motivos da restrição ao leque de “pessoas” que podem utilizá-las seja político. Reparem que boa parte dos habilitados é órgão do Estado: Presidência, Senado, Câmara, Assembleias e Governos Estaduais. Os outros, como a OAB, partidos e sindicatos são entidades não-estatais mas que por sua natureza estão intimamente ligados ao funcionamento do poder público.
Outra característica comum é que todas as entidades possuem uma relevância dentro do aparato judiciário. Além dos membros do Estado, os advogados são membros essenciais à Justiça, conforme a Constituição. Os partidos são os polos aglutinadores de quem disputa os rumos do poder público. Já os sindicatos representam o interesse da classe trabalhadora (e os sindicatos patronais, dos patrões).
Assim, não há relação alguma entre a PEC e a lógica estabelecida pela própria Constituição.
Aliás, todas as desculpas dadas são insuficientes. Por exemplo: vamos supor que por milagre alguém tenha coragem de propor o fim da imunidade tributária às igrejas. O deputado afirma que as igrejas não poderiam questionar a constitucionalidade desse fato. Mentira. Primeiro porque isso seria proposto através de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) e a própria CCJ discutiria a constitucionalidade dela. Lá, em audiências e através de políticos ligados às igrejas poderiam questionar a proposta. Segundo porque esta é uma discussão política, não jurídica. Ou seja, cabe ao Congresso e não ao STF decidir isso. Se politicamente decidirmos taxar as igrejas, o poder judiciário nada poderá fazer. Em tese, ele apenas faz cumprir a lei quando provocado. A mesma ideia se aplica ao ensino religioso e à liberdade religiosa.
Mas de fato, o principal motivo é óbvio: nas definições dos rumos do Estado, a religião deve ser coadjuvante. Seja para preservar um Estado fundado na ciência e na razão seja para garantir que todas as crenças sejam respeitadas, religião e Estado nunca devem se misturar.
Até porque, imaginem se formos questionar a constitucionalidade de uma lei pela perspectiva religiosa. Qual será ela? A católica? A budista? A do candomblé?
Aprovar qualquer legislação que vise ampliar a intromissão religiosa na vida do Estado é um retrocesso sem tamanho. Já acho bizarro existirem bancadas religiosas no Congresso. Agora, dar um poder restrito às entidades político-jurídicas à religião é distorcer toda a lógica do Estado Democrático de Direito. É jogar no lixo todas as duras conquistas da Revolução Francesa até hoje.
Em tempos de Feliciano todo cuidado é pouco. Qualquer cidadão deve ter o direito de questionar leis e ações do Estado na Justiça, religioso ou não. A questão é que o critério adotado para o questionamento deve sempre ser racional e nunca transcendental. Até porque, toda vez que se confundiu moral religiosa com Direito, pagam os pobres, mulheres e minorias. O Estado deve existir para corrigir este desequilíbrio, nunca para aprofundá-lo.

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