terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Por que os advogados brasileiros não podem atender de graça?

Há mais de uma década, a advocacia voluntária enfrenta obstáculos impostos pela OAB; nova regulamentação pode tanto fomentar quanto restringir a prática
Por Nádia Barros e Marcos Fuchs |

IPB (Instituto Pro Bono) lançou recentemente um vídeo de pouco mais de 2 minutos na internet. Por meio de um simples desenho animado, o vídeo mostra porque o acesso à Justiça no Brasil ainda é um privilégio para poucos. Com 29 mil casos para cada defensor público, é impossível que os mais de 30 milhões de brasileiros que precisam de um advogado, mas não podem pagar pelos honorários, sequer se aproximem da Justiça que almejam um dia alcançar.
Assista ao vídeo (recarregue a página ou clique aqui se não conseguir visualizá-lo):
Seja para corrigir uma certidão de nascimento ou resolver pendências de pensão alimentícia ou contratos trabalhistas, as pessoas precisam muitas vezes de um advogado. O número de defensores públicos é insuficiente, assim como o número de advogados dativos (pagos pelo poder público para atender gratuitamente). Então, por que não é permitida no Brasil a advocacia pro bono?
Pro bono publico é uma expressão latina que significa “para o bem comum” e hoje se refere à provisão gratuita de serviços legais àqueles que não poderiam, de outra forma, acessar a Justiça.
ObstáculosO ideal pro bono marca o fomento à cultura da advocacia voluntária, ainda pouco estimulada no Brasil. Há mais de uma década a prática enfrenta obstáculos impostos pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), contrariando a tradição de atuação jurídica gratuita herdada desde Luís Gama, passando por Rui Barbosa na libertação dos escravos. A Resolução Pro Bono de 2002 autorizou a assistência gratuita às entidades do terceiro setor, proibindo, no entanto, a prática direcionada a pessoas físicas.
 O número de defensores públicos é insuficiente, assim como o número de advogados dativos (pagos pelo poder público para atender gratuitamente)
Em junho deste ano, pouco depois de uma Audiência Pública que reuniu nomes como Gilmar Mendes e Flávia Piovesan, a resolução vigente foi suspensa. Uma comissão foi formada no Conselho Federal da OAB, mas, até o momento, os rumos desse debate permanecem incertos. Vive-se, assim, a iminência de uma nova regulamentação que poderá tanto fomentar pro bono enquanto alternativa para ampliação do acesso à Justiça no País, como restringir ainda mais essa advocacia.
Alguns de seus opositores afirmam que pro bono poderia contornar restrições à publicidade na advocacia, sendo utilizado como artifício para captação de clientela. Outros, que minaria a função de dativos e de pequenos escritórios de regiões afastadas. Mas essas são afirmações que não merecem ser consideradas. A prática é incentivada em países vizinhos, como, por exemplo, Chile, Colômbia, Peru e Venezuela funcionando de modo a complementar à expansão do acesso à Justiça sob a iniciativa da sociedade civil.
Pobreza é mais do que não ter dinheiroA questão do acesso à Justiça relaciona a igualdade jurídico-formal às desigualdades socioeconômicas. A pobreza hoje é compreendida menos como falta de renda, e mais como a falta de entitlements, de acesso aos serviços fundamentais. Afinal, a exclusão pode ser mensurada em termos relativos, e um cidadão pode ter acesso a certos bens de consumo sem, contudo, ter conquistado de fato a cidadania.
No caso da justiça os obstáculos são inúmeros. São econômicos, uma vez que os custos de litigação são altos – e, ainda, aumentam de forma inversamente proporcional ao valor da causa, provocando uma dupla vitimização das classes populares. Além disso, há obstáculos culturais que distanciam milhões de brasileiros da sua administração, já que os cidadãos mais vulneráveis têm, geralmente, menos conhecimento sobre seus direitos.
 A pobreza hoje é compreendida menos como falta de renda, e mais como a falta de entitlements, de acesso aos serviços fundamentais
A assistência jurídica gratuita é um dever intransferível do Estado que consta na própria Constituição. A ascensão de novos direitos no contexto do Estado de bem-estar social do pós-guerra passa a exigir um maior acesso à Justiça visando sua garantia e satisfação. Via de regra, essa função é da Defensoria Pública – da União ou dos Estados. O Estado, entretanto, não tem conseguido atender a imensa demanda. Como bem mostra o recém-lançado Atlas de Acesso à Justiça, o número de defensores públicos por habitantes é exíguo em todas regiões. Um cenário distante de mudanças, uma vez que a maior parte do investimento público é destinada ao convênio com a Ordem dos Advogados (OAB).
A dificuldade de expansão e falta de capilaridade, no entanto, é apenas um entre vários vícios do sistema público assistencial. O foco permaneceu na assistência jurídica, e não na consulta jurídica (independente de existência de litígio). A educação é ainda minoritária, e por se tratar de uma assistência jurídica individual, ficaram excluídos dessa tutela os problemas de ordem coletiva relativos às classes subordinadas.
A falha em fornecer assistência mina o Estado de Direito e a fé na democracia. Tomemos como exemplo o caso de uma mãe que precisa de um advogado para corrigir um erro na sua certidão de nascimento, caso esse mencionado no curta do Instituto Pro Bono divulgado há poucas semanas. Com a demora em obter ajuda, ela irá perder gradualmente a fé no compromisso do sistema jurídico pela justiça independentemente da classe social.
Transformação x status quo
A luta democrática pela expansão do direito, no entanto, não se restringe ao seu acesso, diz respeito também à sua transformação. E é nessa luta que se insere o movimento pro bono pela liberação definitiva da advocacia voluntária.
Assim, parece-nos que a disputa em torno da advocacia pro bono excede a questão da prática, formando uma imagem do próprio embate que o universo jurídico hoje enfrenta entre o Direito enquanto instrumento de transformação social e de manutenção do status quo.
 A luta democrática pela expansão do direito, no entanto, não se restringe ao seu acesso, diz respeito também à sua transformação
Milhares de advogados dispostos a ajudar foram impedidos de fazê-lo nos últimos anos – uma maioria esmagadora se diz favorável ao exercício livre da profissão em pesquisa conduzida sob o financiamento do Instituto Lafer.
De um lado, o perfil delineado para o graduando em Direito, segundo a OAB, é o de uma formação humanística, adequada à compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico e das transformações sociais. Senso ético-profissional e responsabilidade social, assim como a busca pelo aprimoramento da sociedade, seriam princípios balizadores da profissão. O próprio Código de Ética e Disciplina da Ordem menciona que o advogado deve ter consciência de que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos.
De outro, um Conselho Federal que adia, mês a mês, a regulamentação definitiva da advocacia pro bono no país.
Assim, aguardamos ansiosos a solução da incongruência do órgão que deveria, na verdade, ser o primeiro a fomentar a prática da advocacia voluntária no País.
* Nádia Barros é mestranda em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades, pela Universidade de São Paulo, é cientista social formada pela mesma Universidade. Atuou como voluntária em diversas iniciativas da sociedade civil organizada na defesa de direitos. 
Marcos Fuchs é advogado, fundador e diretor executivo do Instituto Pro Bono e diretor adjunto da Conectas Direitos Humanos.


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