Ministério Público anuncia prisão de quatro auditores da gestão Kassab acusados de cobrar propina para legalizar empreendimentos imobiliários. Tão importante quanto investigar suas relações com as empresas, é conhecer as conexões destas com outros gestores e obras públicas
O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP) anunciou na quarta-feira, 30 de outubro, a prisão, pela Polícia Civil, de quatro ex-funcionários públicos ligados à Subsecretaria da Receita da Prefeitura de São Paulo durante a gestão de Gilberto Kassab (PSD). Segundo investigação levada a cabo também pela Controladoria Geral do Município (CGM), eles são acusados de fazer parte de um esquema de corrupção que condicionava a liberação do Habite-se ao pagamento de propina pelo empreendedor imobiliário. O Habite-se é um documento emitido pela prefeitura garantindo que a construção foi concluída dentro das normas legais exigidas. Um fator imprescindível para a emissão do documento é o pagamento, pelo empreendedor, do ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza) calculado sobre o custo total da obra. Foi nessa cobrança que os acusados armaram o esquema.
Segundo o Ministério Público, os auditores fiscais emitiam aos empreendedores guias com valores irrisórios de recolhimento de ISS. Depois, cobravam destes propinas de alto valor a serem depositadas em suas contas bancárias. Se o empresário não pagasse o montante pedido, não recebia o Habite-se. “Uma grande empresa empreendedora recolheu, a título de ISS, uma guia no valor de R$ 17,9 mil e, no dia seguinte, depositou R$ 630 mil na conta da empresa de titularidade de um dos auditores fiscais. O valor da propina corresponde a 35 vezes o montante que entrou nos cofres públicos”, exemplificou o Ministério Público emnota divulgada em 30 de outubro. O foco dos auditores, segundo as investigações, eram prédios residenciais e comerciais de alto padrão, cujo custo de construção passava dos R$ 50 milhões. O esquema gerou prejuízo de pelo menos R$ 200 milhões aos cofres públicos, de acordo com o MP.
Mas quem pagou a propina?
Uma das coisas que mais chamou a atenção na nota do Ministério Público foi a não abertura dos nomes das empresas do setor imobiliário que pagaram propina. No caso dos auditores presos, foram publicadas as iniciais dos seus nomes, cargo ocupado e ano de exoneração. Com esses dados, foi tarefa simples cruzar informações e chegar aonome completo de cada um deles.
Na edição desta sexta-feira, 1º de novembro, o jornal “O Estado de S. Paulo” publicou reportagem revelando os nomes de pelo menos cinco empresas envolvidas no esquema: as incorporadoras Trisul, BKO, Tarjab, Alimonti e Brookfield.
Tão importante quanto investigar as relações dos ex-funcionários com as empresas é conhecer as conexões destas empresas com outros gestores públicos.
A partir dessas informações, outras questões surgirão, e o conjunto de respostas a cada uma delas talvez seja capaz de revelar acordos entre poder público e capital imobiliário ainda mais antigos e profundos do que o revelado pelo MP. Considerando que em algum momento os nomes de todas as empresas envolvidas serão divulgados ao público, há pelo menos quatro perguntas cruciais a serem feitas: essas empresas fizeram doação à campanha de algum político? Se sim, a qual/quais? Em qual ou quais eleições? As empresas estão ou estiveram envolvidas em alguma obra pública?
Doação de campanha é investimento
Em reportagem publicada em setembro no projeto Arquitetura da Gentrificação (AG), daRepórter Brasil, a apuração revelou, por meio de análise e cruzamento de dados, que empreiteiras, incorporadoras e construtoras foram responsáveis por mais de 57% das doações feitas só aos diretórios nacionais de partidos que elegeram os vereadores da capital paulista. Há ainda doações dessas empresas aos diretórios estaduais, municipais, aos comitês de campanha e aos próprios candidatos. Quase todos os vereadores que venceram o pleito de 2012 na capital paulista receberam, direta ou indiretamente, verbas de empresas do setor imobiliário. Segundo o juiz Márlon Reis, um dos idealizadores da Lei Ficha Limpa, dentro de um universo de milhares de empresas potencialmente doadoras pertencentes aos mais diversos segmentos, ter doações maciças vindas de poucas companhias não demonstra outra coisa senão o interesse na “troca de benefícios indevidos” entre políticos e agentes do setor privado. Já nas palavras do ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Torquato Jardim, as doações, muitas vezes, são “investimentos”. “Se o candidato ganhar a eleição, o doador ganha contratos”, afirmou Jardim.
O (anti) exemplo de Serra e Kassab
Durante os mandatos de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD) na Prefeitura de São Paulo (2005-2012), ficou clara a relação de “pagamento do investimento” feito por meio de contratos de obras milionárias – alguns deles fraudulentos – que impactaram e impactam até hoje a cidade e seus moradores, especialmente os que viviam em favelas e foram expulsos de suas casas, de maneira violenta, para que ali brotassem novas torres comerciais, residenciais, avenidas e viadutos questionáveis do ponto de vista do planejamento urbano.
Em entrevista em vídeo a ser publicada em breve no site doArquitetura da Gentrificação, a urbanista Ermínia Maricato fala sobre o casamento de interesses entre o capital imobiliário, a indústria automotiva e o poder público que afronta leis para dar vazão à gana construtiva com fins meramente rentistas, e que está levando as cidades a um abismo de muitos níveis de profundidade: do aumento abusivo do preço da terra e do custo de vida à verticalização irracional dos bairros, do caos da mobilidade à expulsão violenta da população de menor renda das regiões centrais da cidade.
Diante desse cenário, é possível dizer que o processo de gentrificação contemporâneo que ocorre na capital paulista tem parte das suas raízes nas doações de campanha maciças feitas por empreiteiras aos gestores, e “pagas” por estes, depois de eleitos, por meio de contratos de obras que, em vez de revigorarem a cidade, a mortificam juntamente com seus moradores.
O caixa 2 da relação
A rede de corrupção que o MP revelou na última quarta-feira é, de alguma forma, o “caixa 2″ das relações questionáveis entre poder público e empresas do setor imobiliário, e que não é “privilégio” de nenhum partido ou gestão. Considerando que o caixa 1, ou seja, as doações de campanha feitas dentro da lei, já são bastante daninhas, o potencial destrutivo das propinas é ainda maior. Se é possível comprar um Habite-se, é possível também, dentro da mesma lógica do crime, comprar alvarás, licenças, laudos técnicos e outros documentos que podem evitar – ou precipitar – tragédias urbanas.
Por isso é essencial aprofundar a apuração nas redes de relações dessas empresas com gestores públicos, a começar por aqueles a quem, por ventura, tenham feito doação de campanha, seja em administrações anteriores ou na atual.
Segundo a nota do Ministério Público, o órgão “investiga se as empresas foram vítimas de concussão, porque não teriam outra opção para obter o certificado de quitação do ISS”. Toda investigação é necessária. Mas independentemente do nível de participação no esquema que essas companhias tenham tido, é importante nunca perder de vista que no cenário de mentiras e ilegalidades em que atuam os corruptos do poder público, a manutenção desse tipo de crime só é possível porque há a figura do corruptor do setor privado que aceita a oferta.
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