Produtos contendo organismos geneticamente modificados são vendidos em todo o país sem qualquer identificação ou controle suficiente por parte dos órgãos de fiscalização
Por Maurício Thuswohl
É apenas uma letra “T” pintada em preto sobre um pequeno triangulo amarelo fixado nas embalagens, mas as empresas que comercializam produtos que contêm ingredientes transgênicos fogem desse símbolo como o diabo foge da cruz. Regulamentada em março de 2004, nove meses após a autorização do primeiro plantio comercial de soja transgênica no Brasil, a rotulagem ainda é uma meia-realidade no país.
Se, por um lado, produtos com maior visibilidade, como os óleos de soja ou os biscoitos à base de milho processado das marcas líderes, já são rotulados há algum tempo, outros produtos contendo transgênicos circulam pelo território nacional sem que haja qualquer identificação ou controle suficiente por parte dos órgãos de fiscalização. Ao mesmo tempo, as empresas se valem de parlamentares ligados ao agronegócio para tentar aprovar no Congresso Nacional leis com o intuito de reverter a obrigatoriedade de rotulagem ou, ao menos, suavizá-la.
A primeira menção à rotulagem de produtos transgênicos no Brasil foi feita no Decreto Presidencial 4.680, que se seguiu à Medida Provisória 113, editada em abril de 2003 pelo governo federal para regularizar a situação dos agricultores gaúchos que haviam plantado ilegalmente naquela safra a soja RR, desenvolvida pela transnacional Monsanto. Ao editar a MP, o governo exigiu que todos os produtos obtidos a partir da soja modificada fossem identificados como tais, desde que detectada uma presença de componentes transgênicos superior a 1% do volume total do alimento vendido, seja para consumo humano ou animal. Três dias após a publicação da MP, no entanto, o próprio Ministério da Agricultura admitiu que o governo ainda não tinha meios para fiscalizar a rotulagem. Esta só viria a ser regulamentada em março de 2004 pelo Ministério da Justiça, que publicou portaria criando o célebre símbolo triangular com a letra “T” em seu interior.
A indústria não quer unir sua marca a um alerta, como se seu produto fosse uma coisa perigosa
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As primeiras fiscalizações, efetuadas pela Secretaria Nacional do Consumidor, ligada ao Ministério da Justiça, só vieram a ocorrer de fato em outubro de 2004, por meio de testes realizados em amostras de 294 produtos recolhidos em vários estados. Sintomaticamente, no entanto, jamais foram flagrados pelos fiscais casos de produtos contendo transgênicos. À evidente falta de capacidade de fiscalização do governo, aliava-se a pouca vontade das grandes empresas dos setor de alimentos em aderir à rotulagem: “A indústria não quer unir sua marca a um alerta, como se seu produto fosse uma coisa perigosa. O tal símbolo incomoda: não é informação, é um alerta. Incomoda também a tolerância de apenas 1%. Gostaríamos que fosse 4%”, disse, à época, o diretor jurídico da Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), Paulo Nicolellis.
A resistência das empresas do setor alimentício foi além da retórica, e a maioria simplesmente ignorou a determinação. Isso começou a mudar em 2005, depois que as organizações Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e Greenpeace denunciaram que as transnacionais Bunge (Holanda) e Cargill (EUA) utilizavam transgênicos na produção de suas marcas de óleo de soja Soya e Liza, líderes no mercado brasileiro, sem que estas fossem rotuladas. As denúncias, comprovadas pelas investigações do Ministério Público Federal, fez que a Justiça Federal obrigasse as duas empresas a rotular seus produtos com o símbolo dos transgênicos, o que começou a ser feito em 2008.
Desde 2007, no entanto, parlamentares ligados ao agronegócio, à indústria da alimentação ou ao setor de transgenia começaram a apresentar projetos de lei com o objetivo de criar uma nova legislação para a rotulagem. Naquele ano, a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), então no DEM, tentou aprovar, sem sucesso, um Projeto de Decreto Legislativo para acabar com a obrigação do uso do símbolo triangular amarelo com a letra “T”, tão temido pelos ruralistas.
ObrigatoriedadeA principal iniciativa para flexibilizar a medida foi apresentada em 2008 pelo deputado federal Luís Carlos Heinze (PP-RS) e incluída desde 2011 na pauta do plenário da Câmara dos Deputados, onde aguarda votação. O PL 4.148 tem como principais objetivos: a) deixar de exigir a obrigatoriedade da informação sobre a presença de transgênicos no rótulo do produto desde que não seja possível sua detecção pelos métodos laboratoriais (regra que excluiria da rotulagem alimentos como papinhas de bebês, óleos, bolachas e margarinas); b) desobrigar a rotulagem dos alimentos com origem em animais alimentados com ração transgênica; c) excluir o símbolo com o triângulo amarelo e a letra “T’ que hoje permite a identificação do produto transgênico; d) tornar facultativa a informação no rótulo quanto à espécie doadora do gene transgênico.
Em carta de repúdio enviada ao Congresso Nacional, diversas organizações do movimento socioambientalista brasileiro afirmam que o PL 4.148/08, ao mesmo tempo, fere o Código de Defesa do Consumidor, revoga o Decreto de Rotulagem (4.680/03), contraria a Lei de Biossegurança aprovada em 2005 e descumpre os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil como signatário do Protocolo de Cartagena da ONU. No documento, os ambientalistas afirmam que a tentativa de alterar a lei “prejudica o controle adequado dos transgênicos, já que a rotulagem é medida de saúde pública relevante para permitir o monitoramento pós-introdução no mercado e pesquisas sobre os impactos na saúde” e “viola o direito dos agricultores e das empresas alimentícias que optam por produzir alimentos isentos de ingredientes transgênicos”.
Além disso, a carta assinada por organizações como Idec, Greenpeace, Articulação Nacional de Agroecologia, Campanha Brasil Livre de Transgênicos e Agrotóxicos, Terra de Direitos e Via Campesina, entre outras, afirma que um relaxamento definitivo na rotulagem dos transgênicos no país “pode impactar fortemente as exportações, na medida em que a rejeição às espécies transgênicas em vários países que importam alimentos do Brasil é grande”.
A pressão surtiu efeito, e o PL 4.148/08 adormeceu por algum tempo nas gavetas da Mesa Diretora da Câmara até que a discussão em torno dele foi retomada em dezembro de 2012, em regime de urgência: “Fizemos nova campanha para barrar esse PL, com um bom corpo de assinaturas. Enviamos e-mails diretamente para presidentes de partidos, líderes de bancada, frentes parlamentares e integrantes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional [Consea]. A pressão deu certo, ele foi passado para 2013 e ainda não retomado, embora ainda esteja em regime de urgência. A qualquer momento, pode ser votado”, diz João Paulo Amaral, pesquisador do Idec, ressaltando que a rotulagem de transgênicos está prevista no 3º Plano Nacional de Direitos Humanos.
O limite de 1%Em agosto de 2012, provocado por Ação Civil Pública movida pelo Idec, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região concedeu decisão favorável à rotulagem de produtos alimentícios que contivessem qualquer porcentagem de transgênicos, mesmo abaixo de 1%. A decisão confirmou ação movida em 2007 e negou recursos interpostos pela União e pela Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia): “O Idec entrou com ação considerando que essa definição de 1% não estaria garantindo a informação clara ao consumidor, que poderia estar ingerindo algo com transgênicos, embora fosse menos de 1%, e não saberia disso. A decisão do TRF quebrou com essa regra do 1%. Então, ficou valendo a rotulagem para qualquer porcentagem de transgenia”, diz Amaral.
A vitória dos movimentos de defesa dos consumidores, no entanto, não durou muito: “No final de dezembro de 2012, logo após o Natal e bem no meio dessa campanha que estamos fazendo, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a decisão tomada pelo TRF em agosto. Então, caiu a decisão e voltou a valer o 1%, conforme o decreto presidencial de 2003”, relata o pesquisador do Idec.
Curiosamente, a indicação da presença de qualquer percentual de transgênicos nas embalagens dos produtos está prevista em outro Projeto de Lei que, no entanto, merece igualmente o repúdio das organizações do movimento socioambientalista. De autoria do deputado federal Cândido Vacarezza (PT-SP), o PL 5.575, apresentado em 2009 e que aguarda a sua apreciação por uma comissão especial da Câmara, é repudiado pelos ambientalistas porque prevê também, atendendo a um anseio das empresas, o fim da existência de qualquer rótulo ou símbolo indicativo de transgênicos nas embalagens. Isso sem falar que o PL 5.575/09 traz outro item sobre a liberação do cultivo de plantas geneticamente modificadas com estruturas reprodutivas estéreis, conhecidas como sementes suicidas outerminator.
Manter o triângulo amarelo com o ‘T’ de transgênico é fundamental para que o consumidor tenha o direito à informação clara, como determina o Código de Defesa do Consumidor
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“Manter o triângulo amarelo com o ‘T’ de transgênico é fundamental para que o consumidor tenha o direito à informação clara, como determina o artigo VI, nos incisos 2º e 3º, do Código de Defesa do Consumidor”, diz Amaral. O Idec faz outro alerta aos consumidores: “Aguardamos até hoje a realização de Estudos de Impacto Ambiental para garantir se o consumo de transgênicos é seguro, pois, teoricamente, os produtos com ingredientes transgênicos não deveriam estar no mercado se não há clareza se são seguros ou não para serem consumidos e também produzidos. Nossa preocupação é que, além da questão da rotulagem, é preciso garantir alternativas ao consumidor. Até porque senão daqui a pouco todos os produtos terão o ‘T’ e aí não teremos mais escolha. Se quisermos falar em consumo sustentável e em alimentação saudável, temos de falar em alternativas que sejam acessíveis ao consumidor”, diz.
FiscalizaçãoDelegada no Brasil à responsabilidade de uma série de órgãos como a Secretaria Nacional do Consumidor, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ligada ao Ministério da Saúde, os Procons e as vigilâncias sanitárias estaduais, a fiscalização da rotulagem de produtos transgênicos, ainda assim, continua sofrível no país, segundo o Idec: “Fizemos uma pesquisa no período de festas juninas para avaliar os produtos à base de milho transgênico que teriam essa informação. Descobrimos que há uma série de marcas que não está com a rotulagem de transgênicas adequada. A maior parte delas não tinha a presença do símbolo com o ‘T’ nem trazia a informação ‘contém transgênicos’ escrita por extenso abaixo do símbolo. Quase nunca estava presente também a informação sobre qual era exatamente a espécie doadora do gene adicionado àquele milho e que estava causando a transgenia daquele alimento”, diz Amaral.
O pesquisador do Idec diz que ainda falta muito para que a rotulagem de produtos que contêm ingredientes transgênicos possa ser considerada satisfatória no Brasil: “Não basta ter o símbolo com o ‘T’ na embalagem, pois é apenas uma forma de fazer o consumidor identificar com facilidade se há transgênicos e reconhecer aquele produto rapidamente. O resultado da pesquisa nas festas juninas dispara o alarme de que falta fiscalizar e cobrar para que esses produtos tenham realmente a rotulagem garantida”.
Outro tipo muito importante de fiscalização – a feita pelo próprio consumidor – também deixa a desejar no Brasil, apesar de existirem inúmeras pesquisas de opinião indicando que as pessoas querem saber se o alimento consumido contém ou não ingredientes transgênicos: “O Idec fez uma enquete para saber se a pessoa já encontrou na embalagem de alimentos à base de milho alguma indicação sobre a presença de ingredientes transgênicos. O que se evidenciou é que poucas pessoas veem o ‘T’ na embalagem e também as informações escritas sobre os ingredientes, já que 56% dos entrevistados não viu essa indicação. Mas, o mais interessante é que 40% desses respondentes falam que, sim, já viram o triângulo amarelo com o ‘T’ indicando que aquele produto contém transgênicos. Isso é rapidamente assimilado, mas só 5% leram as informações complementares”, diz Amaral.
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