Depoimentos detalham violências sistemáticas e humilhações. Ao todo, 11 pessoas foram libertadas em navio de luxo atracado em Salvador
Por Guilherme Zocchio
Santos (SP) – Os tripulantes do cruzeiro de luxo MSC Magnifica, pertencente à MSC Cruzeiros, que foram resgatados da escravidão pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) decidiram procurar a imprensa para denunciar as violências que sofreram. A libertação foi resultado de uma operação de fiscalização conjunta que envolveu diferentes órgãos, incluindo o Ministério Público do Trabalho, e a caracterização de escravidão se deu pela submissão do grupo a jornadas exaustivas sistemáticas, maus tratos e assédio moral. Os trabalhadores relatam jornadas superiores a 14 horas. Procurada, a empresa afirmou em nota que “repudia as alegações feitas pelo Ministério do Trabalho e Emprego” e que “não recebeu nenhuma prova ou qualquer auto de infração” (clique aqui para ver o posicionamento na íntegra)*.
Leia mais sobre o caso na reportagem ”Fiscais flagram trabalho escravo em cruzeiro de luxo“ e confira abaixo depoimentos de dois dos 11 trabalhadores resgatados.
“Emagreci 14 quilos em três meses de trabalho”, diz camareiro
“Estava no navio desde que chegou ao Brasil, no início da temporada brasileira, 16 de dezembro de 2013. A nossa jornada diária era de pelo menos 11 horas por dia, mas houve dias em que chegamos a trabalhar até 20 ou 22 horas por dia sem almoço, sem poder jantar, direto. Só deus sabe como é que a gente aguentava. É muito complicado. É muito difícil. De dezembro até 1º de abril, quando a gente desembarcou do navio, eu emagreci 14 quilos, tanto pela comida do navio que não era boa como pelo trabalho excessivo.
A companhia sabia que era bem errado todo esse sistema de trabalho, tanto que eles alteravam o nosso ponto eletrônico e forçavam a gente a assinar uma folha de ponto totalmente adulterada com o horário que eles achavam que era correto para a gente assinar. Quem não assinava, como eu e minha esposa, eles faziam uma perseguição dentro do navio. Faziam piadas. Humilhavam a gente na frente dos outros companheiros e tudo mais.
Aconteceu uma vez em que eu e minha esposa nos negamos a assinar, porque a gente disse que não tínhamos trabalhado somente aquelas horas. Havíamos trabalhado muito mais horas do que aquilo que foi apresentado para a gente assinar.
Isso foi conversado uma meia hora antes de uma reunião que a gente teria com toda a equipe de camareiros. Nosso chefe direto entrou na reunião com muita raiva, nem falou muito coisa, chegou com uma folha de ponto e falou assim: ‘alguém tem problema em assinar esta folha de ponto?’, tentando coagir as pessoas. E as pessoas com medo diziam que não tinham problemas. Então ele olhou para mim e minha esposa e disse: ‘vocês sabiam que no navio se trabalha muito, quero vocês dois na minha sala para falar sobre isso’. Chegamos na sala e ele começou a gritar, e coisas desse jeito.
Fora a nossa jornada de trabalho, que era muito grande, a gente não podia descer nas folgas, por exemplo, em todo o tempo em que eu fiquei com o cruzeiro aqui no Brasil. Em toda essa temporada eu só consegui descer em Santos uma única vez, porque eu disse que ia conversar com um advogado e com o Ministério Público. Se não tivesse feito isso, não teria conseguido sair uma única vez nos portos. Mas, em outros lugares como Buenos Aires, muitas vezes nos colocavam em uma lista de pessoas que não poderiam descer do navio. A gente tinha que estar à disposição do trabalho, mesmo nos horários de folga.”
Depoimento de Anderson Matsuura, 33 anos, desde dezembro de 2013 empregado no navio MSC Magnifica, resgatado por trabalho escravo. Ele tem curso superior incompleto e cumpria seu segundo contrato de trabalho no cruzeiro.
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“Na primeira semana, você não consegue dormir”, conta funcionário do restaurante
“Há três meses e vinte dias comecei a trabalhar neste navio. Era o meu segundo contrato com a companhia. Em outra ocasião, trabalhei em um navio diferente. Quando eu assinei o contrato, imaginei que eu não trabalharia mais do que 11 horas. No outro navio, eu conseguia cumprir essa jornada de 11 horas. Mas neste outro navio eu sempre ultrapassava o tempo.
Minha função era de ajudar o garçom na hora de servir as refeições nos restaurantes. Chegava a trabalhar 13 a 14 horas por dia. O dia começava às 7h da manhã no buffet do navio, com o café da manhã que encerrava às 10h15. Às 10h15 tem o meeting, que é uma reunião e demora mais ou menos meia hora. Saía por volta de 10h45. Às 11h30 eu começava no restaurante, para o almoço. Seguia até o fechamento. O restaurante fecharia às 14h, mas o meu supervisor – que não ia com a minha cara – costumava colocar três passageiros para eu atender, faltando 5 minutos para o restaurante fechar. Então, eu, que estava me preparando para sair, tinha que servir aqueles passageiros que ficavam no local por mais uma hora e pouco. Em vez de sair às 14h, saía às 15h15. Às 15h15, ia à lavandeira para deixar o uniforme. Descansava. E depois, voltava no horário da janta, para só terminar o expediente lá pela 00h30. Ainda havia, no meio disso, algo que chamávamos de “sidejob”, que era um trabalho extra não remunerado, que todo assistente de garçom tem que fazer. Tínhamos que fazer a limpeza do restaurante, e isso, além de termos de fazer com produtos químicos que eram perigosos, acontecia no nosso horário de descanso. Passávamos aspirador de pó, limpávamos janela, porta, a decoração, lavávamos parte da louça… E isso não era remunerado. A gente era obrigado a fazer e, se não fizesse, levava uma advertência. Quando completamos três advertências, você é mandado embora do navio, como se fosse demissão por justa causa.
Quando é sua primeira semana a bordo, você mal consegue dormir. Trabalha até mais, porque tem que fazer diversos meetings, de restaurante, de segurança, de treinamento de emergência. Você não é treinado. Nessa primeira semana, eu nem dormia. Você chega sem saber nada e já tem que trabalhar.”
Depoimento de Elianai Vigon, 24 anos, desde dezembro de 2013 empregado no navio MSC Magnifica, resgatado por trabalho escravo. Ele tem ensino médio completo e cumpria seu primeiro contrato de trabalho no cruzeiro.
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* Texto atualizado para inclusão de posicionamento da empresa, enviado na tarde desta sexta-feira (dia 4).
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