Morte da promessa do futebol brasileiro completa 20 anos. Boleiros comparam estilo ao do astro do Barcelona. Admiradores iam de Pelé a Maradona até Gilberto Gil
Por Raphael Zarko
Pernas finas, bigodinho ralo e camisa sobrando no corpo franzino. A imagem do endiabrado Dener dentro de campo remete a um tempo que não volta mais no futebol brasileiro. Irreverência e molecagem que se misturam com talento e dribles eternos. Em mais de 30 entrevistas sobre o craque morto há 20 anos, o nome de Neymar apareceu 38 vezes. A referência era clara: para quem pouco viu ou não lembra, o Reizinho do Canindé, com seu futebol agudo e irresistível, era uma pedra preciosa que despontava como um dos maiores craques do futebol brasileiro - em trajetória que lembra o início do astro do Barcelona e da Seleção.
Dener morreu em acidente de carro na Lagoa, bairro da Zona Sul do Rio, no dia 19 de abril de 1994. A nova geração que cultua Neymar talvez conheça pouco do craque de Portuguesa, Grêmio, Vasco e com passagem pela seleção brasileira, morto de forma precoce, 17 dias depois de completar 23 anos.
O GloboEsporte.com traz um especial de quatro reportagens para relembrar Dener, além de um webdoc sobre vida e morte do craque (assista acima). Depoimentos de amigos, família, ex-companheiros e técnicos. Casos dentro e fora das quatro linhas. Dribles e polêmicas. A história interrompida ainda nos seus primeiros capítulos.
Dener jogando pela Portuguesa em 1992 (Foto: Djalma Vassão / Agência Estado)
DRIBLE MAIS BONITO DO QUE GOL
Os tempos eram outros. Dener só estreou nos profissionais com 18 anos, numa época em que os jogadores não tinham tanta liberdade de transferências. Depois, entre jogadas geniais e os primeiros casos de indisciplina na carreira, o craque ia e voltava para os aspirantes da Portuguesa - para jogar o torneio secundário e paralelo ao Campeonato Paulista - até confirmar o talento na Seleção e nas passagens relâmpago por Grêmio e Vasco.
Talvez a melhor definição do repertório de dribles de Dener seja do ex-companheiro Sinval. Para ele, o amigo não driblava, mas simplesmente fazia o que era possível com a bola ou sem ela para desviar dos jogadores adversários.
- Dener driblava para frente, com velocidade. Houve uma época em que cismaram em comparar Robinho a ele. De jeito nenhum. Era mais parecido com Neymar. Mas acho que ele fazia menos firula, era mais objetivo, mais participativo - lembra Sinval.
As posições em campo são diferentes. Neymar sempre foi um atacante que caía pelos lados do campo, embora também seja finalizador e centroavante. Dener era meia-atacante. Pegava a bola muitas vezes na linha central e ia se livrando dos adversários, dava na maioria das vezes o último ou penúltimo passe para gol.
“Às vezes um drible bonito é mais bonito que um gol”. A frase ficou famosa em entrevista ao Globo Esporte na sua passagem pelo Vasco. Dener se agarrava às redes de São Januário e contava do prazer que tinha pelo drible. No vestiário e até durante os jogos, dava gargalhadas lembrando que deixou o marcador no chão, que deu uma caneta e desconcertou o outro jogador.
FENÔMENO NO SUL
Dener em ação pelo Grêmio (Foto: Reprodução)
No seu início na Portuguesa, depois que superou a desconfiança que pairava sobre a maturidade do seu futebol, virou o Reizinho do Canindé. O técnico Écio Pasca montou um esquema que livrava Dener de qualquer responsabilidade defensiva. O “losango flutuante” virou manchete dos jornais "Folha de S. Paulo" e "Estado de S. Paulo", e a Lusa ganhou todos os nove jogos, com direito a goleadas de 5 a 1 e 8 a 2, na Copa São Paulo de Futebol Júnior de 1991. Na final, vitória por 4 a 0 sobre o Grêmio dos garotos Danrlei e Emerson.
Na competição, Dener fez nove gols - um a menos que o artilheiro daquela competição, Sinval.
Mal sabia o craque da Portuguesa que aquela exibição contra os gaúchos seria o passaporte para sua estadia no Rio Grande do Sul. Zelio Hocsman, ex-assessor do presidente Fábio Koff, conta a história com ares de folclore. Ninguém no Olímpico esquecia aquele "pretinho" que, conforme palavras de Zelinho, “destruiu” com o Grêmio na final da Copinha. O contato veio depois de uma pelada de fim de ano do Trianon, em Torres, litoral gaúcho. Dener recebeu o convite de Zelinho, questionou se era sério e foi logo levado a um orelhão para falar com Luis Carlos Silveira Martins, o Cacalo, então vice de futebol.
Era uma flor de sem vergonha. Matou a avó dele umas três vezes
Cacalo
No Sul, foram poucos meses e mais alguns obstáculos superados. Diziam que Dener não se adaptaria ao frio, à lama e ao estilo de jogo dos gaúchos.
- Foi um fenômeno no Rio Grande do Sul. Todo mundo desconfiava, mas se adaptou muito bem. Nos meus quatro anos como vice de futebol, se não foi o melhor, foi um dos três melhores que vi - lembra Cacalo.
O dirigente conta um pouco dos pequenos problemas familiares que Dener levava para o clube para justificar alguns deslizes.
- Era uma flor de sem vergonha. Matou a avó dele umas três vezes - diverte-se o ex-dirigente gremista.
A PRIMEIRA CONVOCAÇÃO
Dener chegou à seleção brasileira muito pela impressão que causou em seu então técnico na Portuguesa, Otacílio Gonçalves, que, segundo seus companheiros da época, foi quem mais deu confiança e oportunidades ao craque.
Sinval se recorda do ex-treinador da Portuguesa e que virou auxiliar de Falcão em 1991 dizer a Dener: “Se você jogar mal 10 jogos, você vai jogar o 11º. Não quero saber. Não vou te tirar”.
Falcão o convocou pela primeira vez para um amistoso contra a Argentina, em Buenos Aires, no dia 27 de março. Na foto do jornal "O Globo", uma semana antes do confronto, era o amigo inseparável Tico quem aparecia erroneamente como um dos destaques da convocação do ex-craque Paulo Roberto Falcão. No empate por 3 a 3 com os argentinos no estádio do Vélez Sarzfield, Dener substituiu Luis Henrique, que entrara no lugar de Cafu. O baixinho da Portuguesa fez a jogada do terceiro gol, mesmo com poucos minutos em campo.
- Falcão havia perguntado para mim o que eu achava. Disse para ele: “Pode levar, sem medo” - lembra Otacílio Gonçalves.
Falcão recorda o motivo da convocação. E exalta Dener:
- Era uma época de descobrir novos talentos, porque a safra não era boa. Via muita qualidade nele. Tinha potencial para jogar, talvez não em 94, mas em 98 e com potencial para 2002.
Dener jogando pela Seleção Brasileira em 1992 (Foto: Sergio Amaral / Agência Estado)
INDISCIPLINA E PAPO COM GIL
Os jornais da época, porém, relataram uma indisciplina do garoto Dener. Ele teria saído para a noite com alguns atletas mais experientes, como Neto, do Corinthians, no segundo e último jogo dele pela seleção de Falcão, em Londrina. O ex-técnico da Seleção diz não se lembrar do caso. Com um futebol encantador, Dener fazia admiradores até em outros campos da arte.
Em fevereiro, no carnaval carioca, ele se encontrou com Gilberto Gil num camarote de cervejaria no Sambódromo. O diálogo foi animado, e Dener e o cantor trocaram gentilezas.
- Gil, eu sou seu fã.
- Não, senhor, eu é que sou seu fã. Acho você o máximo. Sou daqueles que brigam com motoristas de táxi quando eles dizem que você não pode ir para a Seleção porque não tem responsabilidade. Eu sempre te defendo. Essa história é bobagem. A Seleção não pode ter somente jogadores certinhos - respondeu o músico, para uma reação estupefata de Dener.
Pepe bota Dener entre os cinco maiores: "Achava que ele ia ser o suprassumo (Foto: Raphael Zarko)
Mas Carlos Alberto Parreira, que substituiu Falcão em 1992, e elogiava Dener, principalmente pelo seu início fulminante no Vasco, muito dificilmente o levaria naquela Copa dos EUA. Mesmo impressionando e roubando a cena de Maradona no seu retorno aos gramados na Argentina. Pelo Newell´s Old Boys, em dois amistosos contra o Vasco, Don Diego parou e só faltou aplaudir os dribles de corpo e a agilidade de Dener, que numa jogada passou por cinco jogadores, mas parou nas mãos do goleiro Norberto Scoponi.
Fala para aquele pretinho esperar que quero cumprimentá-lo no final
Maradona
- Dener me disse que depois do jogo o Maradona foi falar com ele. “Fala para aquele pretinho esperar que quero cumprimentá-lo no final” - conta Edinho, um dos melhores amigos do ex-jogador.
O filho de Pelé completa:
- Ele fez questão de apertar a mão dele, parabenizá-lo. E o Maradona, como o mundo inteiro sabe, tem uma personalidade muito forte, não ia dar moral para qualquer um, ainda mais sendo brasileiro. Mas ele ficou admirado com o futebol único que o Dener tinha.
PEPE: 'ACHAVA QUE ELE IA SER O SUPRASSUMO'
Pelé, pai de Edinho, volta e meia também celebrava a arte de Dener. No gol histórico de 16 de novembro de 1991 contra a Inter de Limeira, no Canindé, o Rei comentou que era “a redescoberta da arte no futebol, que assinaria embaixo” no gol do jogador da Lusa.
Um ex-companheiro do lendário time do Santos dos anos 1960 - e também de seleção brasileira -, Pepe treinou Dener na Portuguesa no início dos anos 1990. Em sua visão, o acidente de 1994 interrompeu uma carreira que se anunciava como das mais espetaculares.
- Achava que ele ia ser o suprassumo. Sempre deixando o Pelé de lado, porque o Pelé era um ET, achava que Dener ia ser algo logo abaixo do Pelé. Era um superdotado, como o Neymar, que conheci no dente de leite. O Dener era desse nível. Mais rápido ainda que o Neymar - afirma.
A morte por asfixia após a batida na árvore dias antes do tricampeonato do Vasco (Foto: Delfim Viera / Agência Estado)
GOLS COM VÁRIAS VERSÕES
A descrição dos dois golaços mais famosos de Dener é curiosa. Os depoimentos se confundem no número de dribles e de driblados. A cena não sai da cabeça de Cristóvão Borges, hoje treinador do Fluminense e então companheiro do meia-atacante na Portuguesa. Para ele, “parecia um filme” quando, em 91, o camisa 10 começou a disparada antes do meio de campo até tocar com classe na saída do goleiro e decretar a vitória da Lusa sobre a Inter de Limeira (1 a 0). Edinho, que assistia à partida no estádio, diz que “o tempo parou” naquele momento.
- Já vi muita coisa, em treinos e jogos, que o Neymar fez desde o início até ir para o Barcelona. Mas como aquele lance do Dener nunca vi igual. Ele jogava num time intermediário, não tinha a força dos grandes e fazer o que ele fez era uma coisa incrível - diz Edinho.
Na outra obra-prima, de novo no Canindé, em 93, e novamente numa arrancada de um piscar de olhos, Dener inicia a jogada com seu drible preferido: uma caneta em Silva. Teimoso, o jogador santista o persegue até a área. E aí…
- Ele me disse depois do jogo: “O Silva meteu a cara na minha mão” - diverte-se Taquá, amigo dos tempos do início de futebol de salão e ex-jogador da seleção brasileira de quadra.
O árbitro naquele dia na vitória da Portuguesa por 4 a 2 sobre o Santos era Oscar Roberto de Godói. Com fama de durão, o juiz deixou passar uma cotovelada à la Pelé de Dener no zagueiro santista. Testemunha e cúmplice do golaço de Dener, Godói relembra o lance com bom humor.
- Na hora em que ele chega no último adversário, eu vejo que ele faz a falta no Silva, ali na meia-lua da área. Eu trago o apito na boca, mas falo: “É um pecado parar esse lance, se ele faz um gol maravilhoso desse, ninguém vai lembrar da falta. Se eu marcar e ele fizer, todo mundo vai reclamar de tantos lances, tantas faltas que os juízes erram...” Então falei: que se dane o Santos, que se dane o Silva, eles vão me perdoar, porque quero que fique perpetuado esse lance. Deixei passar e foi um gol que entrou para a história.
'ELE IA ENCANTAR A EUROPA'
Negociado, mas sem contrato assinado, na véspera da sua morte, Dener ia jogar pelo Stuttgart, onde estava o brasileiro Dunga. Seria uma nova etapa da carreira do craque do futebol de salão, da várzea paulista. E a interrupção brusca no caminho para um treino do Vasco provoca até hoje um exercício de futurologia em quem viu aquela camisa larga tremulando nos 60 quilos que "se livravam de adversários com a facilidade de uma folha", como define bem o ex-técnico Jair Pereira.
O último troféu: a foto com a Taça Guanabara virou quadro na casa da família (Foto: Reprodução)
Ainda em atividade, Zé Roberto, meia do Grêmio - aliás, o jogador só passou para o meio de campo pela influência de Dener em sua carreira - é um dos maiores fãs de Dener. Quando era da base da Lusa, ele disputava a concorrida missão de gandula nos jogos. Queria ver o ídolo o mais próximo possível. Numa das poucas vezes que treinou lado a lado, sentiu vergonha e nem conseguiu falar com Dener, mas não deixou o vestiário enquanto ele estava no mesmo espaço.
- Eu tenho plena certeza de que iria triunfar na carreira. Por ser muito rápido, pela facilidade do drible, ele ia encantar a Europa, ia chegar no mesmo patamar que esses grandes jogadores brasileiros atingiram por lá. Ronaldinho, Ronaldo, Rivaldo. Ele estaria no mesmo patamar - disse Zé Roberto.
Do mesmo jeito que muitos colocam Neymar como parâmetro para o talento de Dener - para o ex-jogador e hoje comentarista Neto “ele seria muito melhor do que Neymar, tinha muito mais talento” -, outros viam no comportamento fora de campo um fator de desequilíbrio para o talento muito acima da média de Dener.
Leão julga o falecido jogador superior a Robinho e lembra que ele poderia ser “tão bom ou melhor do que Neymar”, mas não acreditava que ia pelo caminho certo para tudo isso.
- Pelo seu ambiente fora de campo, pelo seu dia a dia, pelas suas amizades, ele já estava sendo altamente prejudicado. Olhava ele jogando e pensava: “Não é possível que um menino desse tamanho, com essa idade, tenha tanta visão de jogo, tanta velocidade.” Mas o que sobrava de inteligência dentro de campo faltava fora. Eu soube de coisas desagradáveis depois que saí da Portuguesa e pensava que ele não teria uma carreira longa nem um final feliz. Infelizmente eu estava certo - diz Leão, antes de concluir “absolvendo” seu ex-jogador.
- Há pessoas de que todo mundo pode falar mal, mas você não consegue não gostar. Ele alegrava o ambiente, não importa o ambiente que estivesse, mas ele alegrava.
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