Cada vez mais pessoas se perguntam se afinal aquela ditadura acabou realmente, tantas são as permanências e os enclaves de cunho ditatorial que persistem
Angela Mendes de Almeida*
Este cinquentenário do golpe de Estado de 1964, que instalou 21 anos de ditadura civil-militar, tem sido acompanhado de uma torrente de debates, artigos, reinterpretações e análises, tanto por parte dos que se opuseram a ela, como por parte dos que, sempre reconhecendo “alguns erros”, exaltam os feitos econômicos dos militares.
Há os que consideram que de 1964 a 1968 a ditadura foi branda e pontuam o seu verdadeiro início no momento do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. Quanto ao final da ditadura, esses articulistas aproveitam-se de várias datas em que acontecimentos importantes deram passos para finalizar o regime militar: 1979, com a Lei da Anistia; 1985, com a posse do primeiro presidente civil, embora vice e eleito por eleições indiretas, Sarney; e 1988, com a promulgação da Constituição, chamada de “cidadã”, título hoje já meio desbotado.
Porém, no momento atual cada vez mais pessoas se perguntam se afinal aquela ditadura acabou realmente, tantas são as permanências e os enclaves de cunho ditatorial que persistem, tantas são as situações em que a lei do Estado Democrático de Direito erigido em 1988 não é respeitada.
Pesa sobre a sociedade brasileira a memória da escravidão, o velho estilo de convivência social entre as classes herdado do regime escravista |
A área da segurança pública, na qual se cometem todas as barbaridades em termos de violações dos direitos humanos contrárias à legislação escrita, é um desses enclaves. Trata-se de uma zona de sombra que só é analisada à parte, como fenômeno autorreferente que evolui e transita fora da vida parlamentar, eleitoral e cultural. O aparato repressor do Estado brasileiro persegue os habitantes das favelas e periferias pobres com invasões militarizadas em suas comunidades e abordagens policiais truculentas, que podem se converter em torturas e tratamentos cruéis e degradantes, degenerar em encarceramentos, muitas vezes injustos e “plantados” por provas forjadas, ou, no limite, em execuções sumárias e extrajudiciais, eventualmente seguidas de ocultação de cadáveres. Esse tratamento, ilegal do ponto de vista de qualquer legislação, seja ela ditatorial, seja ela democrática, está banalizado, naturalizado, integrado à “normalidade” da sociedade brasileira.
A permanência da estrutura ditatorial na área da segurança pública não é a única razão para que, cotidianamente, as leis do Estado Democrático de Direito brasileiro sejam conspurcadas pelas violações aos direitos humanos, perante a indiferença geral. Pesa sobre a sociedade brasileira, como uma marca nas mentalidades, a memória da escravidão, o velho estilo de convivência social entre as classes herdado do regime escravista. Os pobres, em sua maioria negros, são os herdeiros daquela imagem imaginada que permaneceu, dos escravos recém-libertos da Primeira República, “vagabundeando” à espera da ocasião propícia para cometer um delito. A figura do “suspeito”, pela sua aparência, é o destino da truculência policial, sob a forma de ofensas, humilhações, bofetadas – no estágio inicial do contato nas periferias –, que depois degeneram em torturas, prisões em flagrante injustificadas e execuções sumárias.
Para a consolidação dessa mentalidade escravista a sociedade brasileira recebe da imprensa de todo tipo, especialmente dos programas televisivos de fim de tarde, uma contribuição suculenta. O “suspeito” torna-se o “bandido”, é impunemente humilhado frente às câmeras de televisão e vai engrossar a nossa população carcerária, que cresceu, de 1992 a 2013, 403%, enquanto a população brasileira cresceu apenas 36%. São 574 mil presos, a quarta população carcerária do mundo. Fácil é entrar no sistema carcerário, quando se é pobre e negro. Difícil é sair, graças à contribuição do Poder Judiciário de mentalidade escravista, ávido por castigar o “bandido”, daí a quantidade de presos ilegalmente, com penas vencidas ou com prisão temporária esgotada.
Quando depois, tratados bem pior que os mais desprezados animais, os presos se rebelam, a sociedade fica toda alvoroçada e boa parte dela preconiza os castigos mais cruéis. Para a direita, os “direitos humanos são para os humanos direitos”. Os habitantes dos territórios da pobreza, aqueles que mais lembram aquela figura do escravo que vive e palpita no coração de parte da sociedade brasileira como seu “inimigo interno”, não são, em princípio, humanos direitos. São “suspeitos” e são “bandidos”, até prova em contrário.
Portanto está na hora de meditar sobre algumas palavras de ordem dos militantes da causa da Memória, Verdade e Justiça como “Ditadura nunca mais” ou “Para que nunca mais aconteça”. É que aos olhos de muita gente, gente que está se manifestando nas ruas, gente que está sofrendo a violência policial nas suas comunidades e que, em protesto, está queimando ônibus, a violência ditatorial está aí, está acontecendo, nunca deixou de acontecer desde as datas diferentes que escalonam o fim da ditadura civil-militar.
E que dizer da ideia de separar em categorias estanques os mortos e desaparecidos da ditadura civil-militar e os mortos da democracia atual, vítimas da violência policial que a “redemocratização” pactuada esqueceu? |
E que dizer então da ideia de separar em categorias estanques os mortos e desaparecidos da ditadura civil-militar, executados sumariamente ou assassinados sob torturas brutais, e os mortos da democracia atual, vítimas da violência policial que a “redemocratização” pactuada esqueceu? Sim, nós sabemos que os mortos e desaparecidos da ditadura civil-militar eram combatentes conscientes contra o Estado do regime militar. E que a pobreza hoje massacrada ainda não entendeu que é o próprio Estado Democrático de Direito, com suas ambivalências e sua justiça de classe, que quer esmagá-la e reduzi-la ao silêncio que cabe aos escravos. Simbólico dessa ainda inconsciência é a última frase do adolescente de 17 anos, Douglas Rodrigues, que metralhado sem nenhuma razão aparente no bairro de Jaçanã, na Zona Norte de São Paulo, em outubro de 2013, teve ainda tempo de perguntar: “Senhor, por que o senhor atirou em mim?”
Mas do ponto de vista do combate pelos direitos humanos, a violação do corpo humano pela tortura executada pelo Estado e as execuções sumárias ou extra-judiciais dos agentes do Estado são da mesma natureza que as torturas bárbaras sofridas pelos mortos e desaparecidos da ditadura civil-militar, bem como pelos heroicos sobreviventes. Essas violações, que continuam, sob outra forma, são uma chaga da nação brasileira. Elas também pedem Memória, Verdade e Justiça.
Ainda chegará o dia em que se possa dar voz ao sofrimento dessas vítimas anônimas, quando os presos do sistema carcerário puderem contar como foram suas torturas e que sequelas psicológicas deixaram neles e em seus familiares. Ainda vai ser possível ouvir muito das mulheres e crianças que vão visitar seus parentes presos e são submetidas às “revistas vexatórias”, um verdadeiro acinte. Ainda vai haver espaço para que as famílias dos mortos e desaparecidos da democracia atual contem como estão enfrentando a perda de seus entes queridos, às vezes no maior abandono material.
O que sentirão os filhos do Amarildo, ao longo de sua adolescência, lembrando como seu pai foi torturado até a morte e desaparecido? Como estão agora o marido e os quatro filhos pequenos de Cláudia Ferreira, sabendo que sua esposa e mãe foi alvejada por policiais quando carregava um copo de café com leite, jogada ainda viva no porta-malas do carro policial sob o argumento de que era uma traficante (uma “bandida”), depois arrastada por mais de 300 metros pendurada no para-choque do carro?
Lutar hoje por Justiça para os crimes da ditadura civil-militar é também ter a certeza que a impunidade de ontem é o motor da impunidade dos crimes dos agentes de Estado hoje.
* Historiadora, ex-companheira de Luiz Eduardo Merlino – assassinado no DOI-Codi, em São Paulo, em julho de 1971 – e coordenadora do Observatório das Violências Policiais – CEHAL-PUC/SP
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