segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Lembranças e lições do mensalão – parte 1

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(foto: wikipedia)
O último ato do presidente do Supremo veio coroar um dos processos mais midiatizados e idiotizados da história recente do país. Submerso em ilegalidades – das quais listarei algumas abaixo – a AP 470/MG é, como lembrou Valter Pomar, um bom exemplo do funcionamento do judiciário brasileiro: obscuro, seletivo, preconceituoso (no sentido mais amplo do termo), midiatizado e elitista.
Para simplificar, listo abaixo algumas ilegalidades do processo, tentando ligá-las aos predicados que enumerei acima.
  1. Basicamente, a argumentação de Roberto Gurgel sobre o “esquema” se baseia na ideia de que membros do PT (e do governo) compraram votos de parlamentares através de uma mesada, oriunda de dinheiro público. No caso, cerca de 10 deputados (de 513) – que já eram da base aliada do governo – teriam feito saques em dinheiro para votar juntamente com o governo (do qual já faziam parte);
  1. Parte deste dinheiro teria sido feito via empréstimos ilegais no Banco Rural e parte em dinheiro público, do fundo Visanet. Os empréstimos foram considerados legais, restando apenas o uso do fundo como desvio de dinheiro público. A questão, como mostra o advogado de Pizzolatto, é que esse dinheiro não era público. O dinheiro do fundo é oriundo das transações bancárias com todos os cartões – de todos os bancos – de bandeira Visa. Ou seja: a grana veio do uso de todos os cartões Visa do país e não do governo;
  1. Essas duas informações colocam em cheque a ideia de que houve corrupção no caso. Na verdade, boa parte dos crimes imputados deveria ser rejeitada pelo Supremo, já que as denúncias basicamente recaíram sobre o desvio de verbas públicas;
  1. A teoria do domínio do fato, da forma como foi apontada na denúncia, está errada. Não sei se por ignorância ou má-fé, a tese construída é exatamente o contrário ao que ela se propõe. Em curto artigo, dois orientandos (que já são nomes de referência do Direito Penal) de Claus Roxin (criador da teoria), Luis Greco e Alaor Leite, explicam o que é o chamado domínio do fato. Nas palavras deles:
Na prática: a teoria do domínio do fato não condena quem, sem ela, seria absolvido; ela não facilita, e sim dificulta condenações. Sempre que for possível condenar alguém com a teoria do domínio do fato, será possível condenar sem ela.
Passemos aos mitos. A teoria não serve para responsabilizar um sujeito apenas pela posição que ele ocupa. No direito penal, só se responde por ação ou por omissão, nunca por mera posição.”
  1. Ao longo do processo, novas ilegalidades surgiram. Porém, adiantando a fita para os últimos eventos, podemos perceber que a sanha midiática não acabou na condenação.
  1. Apesar de processualmente bem embasada, a expedição dos mandados de prisão se deu antes do fim da ação, contrariando a regra geral do processo penal. O guia básico de condutas democráticas do processo penal ocidental aponta que o recolhimento à prisão deve ocorrer – por motivos mais que óbvios – quando não restarem mais recursos a serem julgados. Não foi o caso.
  1. O Presidente do Supremo fez os pedidos de prisão antes de expedir as cartas de sentença. Esse rito aparentemente burocrático (primeiro sentenciar o condenado para depois mandar prender) faz parte daqueles detalhes que diferenciam um regime democrático de uma ditadura. Prender antes de condenar é ato típico de judiciários controlados por ditadores.
  1. Os réus devem – como manda a lei – cumprir suas penas nos estabelecimentos mais próximos de suas residências. Isso significa que não havia propósito – que não o de criar imagens para a imprensa – em retirar os réus de São Paulo e levá-los até Brasília. Ou seja: pagou-se com dinheiro público a capa da Folha, Veja et caterva.
  1. Vários réus – como Genoíno e Dirceu – foram condenados ao regime semi-aberto. E semi-aberto não é nem regime aberto, nem fechado. Logo, a reclusão de vários réus foi ilegal.
  1. Genoíno passou por uma cirurgia cardíaca séria, devido ao rompimento de sua aorta. Sua dieta é controlada e sua permanência em regime fechado pode acarretar em complicações e até sua morte. Como qualquer estudante de processo penal deve saber, a integridade física do preso é responsabilidade objetiva do Estado. Logo, o mais correto seria Genoíno cumprir pena domiciliar.
Estes pontos mostram algumas das muitas ilegalidades do processo. A questão é que o mensalão não está sozinho no mundo. Ações arbitrárias como estas ocorrem todos os dias, com ou sem mídia. Vejam:
  1. O obscurantismo do caso está na má aplicação de teses, como o domínio do fato. Mas mais do que isso, ele se demonstra na falta de clareza das ações do juiz, que no mais das vezes age sem motivar suas ações (o que é ilegal).
  2. A colheita e adoção das provas – como no caso da justificativa do uso de dinheiro público – são muitas vezes ignoradas no processo penal. Casos de provas forjadas e condenações feitas apenas sob depoimento de policiais são maioria nos tribunais brasileiros.
  3. A seletividade do STF em julgar o caso do mensalão petista antes do tucano (denunciado antes) é visível em inúmeros casos, em especial naqueles onde há forte influência da mídia.
  4. Essa midiatização do processo tem muita ligação com o que chamei de seletividade processual. Casos de forte apelo jornalístico são julgados e investigados com eficiência ímpar, em um país que elucida de 5 a 8% de seus homicídios.
  5. O preconceito a que me referi no mensalão se mostra ao menos de duas formas: a primeira é no sentido amplo: as versões “apuradas” pela imprensa guiaram a denúncia e o julgamento do caso. Foram vários os momentos em que nada – ou muito pouco – foi averiguado pelo MP ou durante o julgamento. O segundo preconceito é de classe mesmo. O caso de compra de votos para a reeleição de FHC está documentado e cheio de provas. Nunca foi julgado. Existem muitos outros casos para compararmos e todos opõem de um lado os amigos dos poderosos e os não-amigos. Não digo que a política petista não se preocupou em alisar os poderosos. Só digo que tem que ser muito trouxa para achar que José Genoíno é rico e influente como a plutocracia tucana.
Destes pontos, retiro a primeira lição para o PT. O que vimos na AP 470/MG é a regra do processo penal, não a exceção. É assim que boa parte dos tribunais se comporta, seja por falta de estrutura, pessoal ou por ideologia. Condena-se de qualquer jeito e por qualquer motivo. Parafraseando Emicida, seguimos amontoando os corpos de quem não tem sobrenome.
Por isso, a primeira lição é que é fundamental e urgente uma reforma no nosso sistema judiciário. Ao invés de ficarmos reeditando leis, precisamos fazer o Estado cumpri-las. Mais infra-estrutura, melhores condições de trabalho aos servidores e, principalmente, mais controle sobre as ações do judiciário são ações de primeira hora para que as arbitrariedades vistas no mensalão sejam um dia a exceção e não a regra no Brasil.
A outra lição – que fica para outro texto – é na verdade uma lembrança: enquanto nossa imprensa for concentrada do jeito que é hoje, a verdade vai seguir sendo aquilo que meia dúzia de pessoas quer que seja. Na dúvida, é só ver o caso da sonegação do ISS em São Paulo. A prefeitura – que é vítima – se tornou suspeita.

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