segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Grafitti, arte e Direitos Humanos

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(foto: Wikipedia)
O atual Secretário de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo – Rogério Sottili – tem atuado com firmeza na defesa dos direitos que dão nome à pasta. Recentemente, Sottili classificou como vandalismo injustificável o ataque à instalaçãoPenetrável Genet, localizada no Ossário onde estão restos mortais da vala de Perus.
Caso conhecido da luta contra a impunidade da ditadura brasileira, a vala de Perus foi encontrada em 1990, dentro do cemitério Dom Bosco. Conforme investigação feita na CPI da Câmara dos Vereadores à época, comprovou-se que para a vala eram enviados clandestinamente corpos de vítimas da ditadura. Sua descoberta é considerada um marco na defesa dos direitos humanos do país para as vítimas da opressão estatal daquele período.
Já a instalação – possivelmente atacada por grupos de ultra-direita – fez parte da 10ª Bienal de Arquitetura e preconizava a interação do público com o local, usando a arte para chamar a atenção sobre como a cidade foi utilizada durante a ditadura.
Atos de vandalismo contra obras de arte não são muita novidade. Seja por aqui ou em qualquer lugar, a destruição de monumentos (religiosos ou puramente artísticos) e intervenções urbanas são ações comuns, em geral feitas por grupos radicais ou fanáticos religiosos.
O grande problema é que, se o vandalismo já é altamente repreensível quando parte do cidadão comum, piora muito quando a iniciativa é estatal.
Fui assistir ontem o documentário Cidade Cinza. A discussão proposta não é a atual – e respeitadíssima – cena do graffiti paulistano. Ao contrário, o documentário mostra qual é a lógica (na verdade a falta dela) por trás de um Estado que quer manter São Paulo sempre cinza. Não só, mostra como a administração Kassab (fazendo referência à atual gestão) de forma subjetiva e absurda destruiu a arte de rua da cidade.
Hoje, enquanto a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) briga pela defesa de instalações como a Penetrável Genet, setores da prefeitura continuam destruindo graffitis de centenas de artistas de rua, incluindo ações d’Os Gêmeos, Nunca e Nina – nomes que figuram entre os maiores do mundo.
E mais: o debate sobre o que a prefeitura deve fazer sobre o caso só ganhou força quando esses nomes começam a ser reconhecidos internacionalmente. Com obras no Tate Modern, Portugal, EUA e vários outros países do mundo, tanto Os Gêmeos quanto Nunca conseguem hoje dar repercussão à ação desastrosa da prefeitura, que já vem de anos.
Engessado numa legislação elitista e por diferenças geracionais, parte do aparelho burocrático considera o graffiti (em todas as suas versões – inclsuive o throw up e o bombing) como sendo tudo menos arte. A questão é que arte não é aquilo que uma lei (ou um legislador) acha que é. Se conceituá-la é algo difícil até numa tese de doutorado, imaginem em uma lei. Lei, inclusive, que parece ter sido escrita por quem não faz ideia o que seja arte.
A atual legislação paulistana aponta como pichação qualquer ação que contenha frases e nomes. Já o graffiti – em tese permitido – seria só o “desenho”, a imagem. Ou seja: se a imagem contiver um texto, é pichação e por isso tem que ser removida.
O ponto aqui é entender que a arte não é algo que se freia, controla. Nem se classifica. Dizer que a pichação não é arte enquanto o graffiti é, seria como dizer que a Última Ceia de Da Vinci é menos arte que um quadro do Romero Britto porque o segundo está numa moldura enquanto a primeira é um grafitão renascentista.
Tratar o graffiti como “sujeira” chega a ser ridículo, inclusive. Pintar paredes com imagens e nomes é tão velho quanto a existência humana. Desde o neolítico estamos contando nosso cotidiano: nas cavernas, cidades romanas ou na Radial Leste.
Do jeito que a legislação está, ela só se presta a torrar dinheiro público e acabar com a identidade cultural paulistana. Sim porque é fato que a arte seja talvez o maior elemento para identificar a cultura de um povo. E quer a legislação queria ou não, pichação e graffiti são manifestações culturais.
Só que arte não é só manifestação da cultura de um povo. É direito de todos os brasileiros e sua preservação é dever do Estado. Na dúvida, recomendo a leitura da Constituição:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
Compreendida como direito fundamental, a manifestação artística não é só protegida pelo direito à livre manifestação e garantida pela liberdade de expressão. Proteger obras de valor artístico é função do Estado.
E mais: o direito à produção artística é também direito fundamental. Tão importante quanto garantir que as pessoas saibam sobre o passado de terror de nosso país através da arte é permitir que todos possam ver a produção artística do presente.
Por isso ao defender – corretamente – a instalação depredada, a SDH garante não só o direito humano à verdade e à justiça das vítimas da ditadura. Como disse, arte é direito fundamental , e por isso, parte integrante dos direitos humanos. Quando ataca a violência contra à obra de arte, garante que o cidadão paulistano possa ter seu direito à manifestação artística respeitado.
Por tudo isso, seria ótimo se o Prefeito  desse voz à sua Secretaria de Direitos Humanos. A Coordenação de Juventude da SDH está articulando – à duras penas – formas de contornar o atual estado de coisas da arte de rua paulistana. Dentre as mudanças necessárias está uma legislação que não só respeite o graffiti como cumpra a Constituição.
Ao mesmo tempo, sugiro aos artistas interessados se organizarem e disputarem a sociedade. Tenho a plena certeza que muita gente apoia a causa e estará do lado de vocês. Mas para que isso aconteça, vocês têm que entrar no debate. E ele está mais vivo do que nunca, ao contrário da nossa cidade, que segue morta e monocromática, como sempre.

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