Cabrobró (PE) e Floresta (PE) - Dançar toré, praticar rituais sagrados e as rezas cotidianas tradicionais eram atos proibidos aos indígenas em Pernambuco até há bem pouco tempo, década de 1970. Os Truká, por exemplo, foram proibidos de dançar e fazer seus rituais dentro da Ilha de Assunção. Os fazendeiros tinham a prática de simplesmente perseguir os indígenas e matá-los. A saída foi tentar manter os rituais às escondidas durante as noites nas ilhotas do São Francisco. Nesse processo de abafamento muita coisa se perdeu, e “o mais triste é que nós nem sabemos o que de fato ficou pelo caminho da nossa história”, lamenta Claudinha Truká, liderança do povo Truká.
O fato de o Nordeste ter sido a porta de entrada da colonização brasileira teve como consequência impactos mais devastadores sobre as comunidades indígenas dessa região quando comparadas com outras partes do Brasil. “Fomos os primeiros povos atingidos pela colonização. Servimos de escudo”, afirma Claudinha.
“A Amazônia tem um tipo de história, o Nordeste tem outro, que, por sua vez, é diferente da do Centro-Oeste e do Sul. Aqui, a colonização veio para acabar com tudo, ao ponto de os índios preferirem não mais dizer que existem. Eles silenciaram”, avalia Alberto Reani, da Comissão Pastoral Indígena em Floresta, conhecido como padre índio.
Renato Athias, antropólogo e professor da Universidade Federal de Pernambuco, avalia a escolha por esconder a identidade indígena como um sinal de resistência dessa população. “Se disessem que eram índios tinham que se submeter ao regime de tutela. Se esconder era uma forma de manter a integridade. Então surge a figura do caboclo e passam a ser identificados como tal. A relação com o Estado era como caboclos. Isso aqui no sertão. Já no Norte, o termo caboclo é usado de forma diferente, justamente para diferenciar o não indígena”, explica.
Os indígenas, depois desse processo histórico, são questionados ainda hoje pela sociedade e pelo governo sobre sua identidade, afinal o que é ser índio.
“Quem pensa que índio é aquele ser diferente, que fala estranho, que anda nu, quando chega ali nos Pankararu olha e diz: ‘gente, aqui é índio? Ele é negro. Com este cabelo assim, com esta cor escura’. Chega em Xukuru, vê uma menina loira, de olhos azuis e diz: ‘esta daqui é índia?’”. Chega em Kambiwá, [encontra pessoas de] pele branca [e diz]: ‘Ah, você não é índia não’. Por quê? Foi o esquema mental que nos foi incutido, preconceituoso”, problematiza Reani.
A identidade dos povos indígenas do Nordeste é questionada também pelo fato de os indígenas não terem preservado a língua — apenas os Fulni-ô falam iatê. “Não se coloca essa problemática do ponto de vista histórico, afinal não perderam a língua originária porque quiseram, mas porque foram proibidos. [O marquês de] Pombal foi bem claro: ‘ai de quem ousasse falar outra língua que não o português’”, lembra Reani.
Tal abordagem preconceituosa também está embricada no conflito de terras decorrente do projeto da transposição, denuncia o dossiê Povos Indígenas do Nordeste Impactados com a Transposição do São Francisco. De acordo com o documento, tem se tornado comum a propagação de um discurso que nega a existência de índios na região, acusando-se aqueles que assim se autoidentificam de mentirosos, charlatões, aproveitadores. “Houve momentos em que o governo reconheceu os povos indígenas como afetados, inclusive para afirmar, numa pretensa tutela, que, ao contrário do que pensavam, seriam beneficiados pelo projeto. Em outros momentos, representantes dos poderes públicos explicitamente negaram a existência de terras indígenas nas áreas de influência do projeto”, relata o documento.
O dossiê traz ainda uma citação de João Pacheco de Oliveira, antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que afirma que negar terras a esses indígenas seria puni-los pela segunda vez. “Diferentemente dos Yanomami ou de outros poucos que habitam em regiões recuadas do país, os povos indígenas do Nordeste não se encaixam comodamente nas representações difusas sobre os índios. Absurdo seria, no entanto, negar-lhes direitos preferenciais à terra sob o argumento de que já não são mais índios, punido-os agora, uma segunda vez, pela destruição trazida pela dominação colonial”, defende.
“Melhor seria pensá-los como povos indígenas, como objeto de direitos coletivos, distanciando-se do mito da primitividade e das improcedentes cobranças que o senso comum instiga a cada momento. Contraditando o senso comum, a presença indígena no Nordeste é bastante significativa, assume inclusive uma grande importância demográfica, ambiental e política, sendo sobretudo de extrema relevância para se refletir sobre os múltiplos horizontes políticos possíveis na relação entre o Estado e os povos indígenas no Brasil.”
Uma história de direitos violados
Conflitos fundiários e dificuldade em entender relação de indígenas com território agravam problemas
O antropólogo Renato Athias lembra que a figura indígena deixa de existir juridicamente com um decreto imperial de 1875. “Já naquela época foi decretado que não existia mais aldeia indígena nem índio. José Bonifácio, em seus vários textos, também diz que não existe mais índio”, explica.
Apenas com a Constituição de 1988 o Estado reconhece a existência de povos indígenas. “Antes o índio era considerado menor de idade, uma pessoa mentalmente incapaz e que, portanto, tinha que ter tutela do Estado. A Constituição muda a condição dos povos indígenas. As pessoas dizem hoje que ‘está surgindo índio de tudo quanto é lugar’. Mas isso só foi possível porque a Constituição permite esse reconhecimento. Então eles estão se revelando e estão em processo de retomada de suas terras”, avalia o antropólogo, que destaca que tais terras, “aqui no Brasil são muito pequenas, uma cabecinha de alfinete no mapa do país”.
O que entra em questão é o conflito entre o direito à propriedade e o direito ancestral. “Leis internacionais que o Brasil assinou reconhecem o direito ancestral. Mas, comumente, o povo não sabe [disso]. Porque a lógica é propriedade particular, propriedade de herança. Então são dois direitos em conflito”, esclarece Athias.
“A gente ouve muita gente falar: por que índio precisa de tanta terra? Nós precisamos para ritual a terra sagrada onde tem os terreiros, precisa de madeira para criar a abelha, terra pra caçar bicho. O lugar onde a gente faz o ritual tem que ter uma caça perto para comer… terreiro para os índios forgar [dançar toré]”, explica Expedito, pajé Pipipan.
“O modo de nos relacionarmos com a terra e seus elementos é improdutível para o modo de vida aí fora. Para a gente não, porque é nosso espaço, espaço de cultuar os encantados e que não deve ser mexido. Entendemos, por exemplo, a agricultura de uma forma e o país entende de outra forma. Nós entendemos agricultura de subsistência. É algo para dar continuidade ao povo, para consumo próprio e não para vender em larga escala. Vendemos sim, mas o suficiente para sustentar nossa família”, afirma Claudinha Truká.
O índio precisa de espaço. Agora, não é qualquer espaço. “[A questão] é que tem o lugar da roça, tem o lugar da pesca, tem o lugar onde tem o murici pra colher, tem o lugar onde tem umas bananeiras, tem o lugar onde tem outra fruta. Eles sabem onde é que tem cada árvore. E sabem qual é a época de cada uma. São espaços para alimentar-se física e espiritualmente e que não podem ser carregados, porque são rios, riachos, cachoeiras, lameiros, mato. São espaços para dar respostas às necessidades que são humanas, mas que a nossa sociedade nos tira ou privatiza”, enfatiza Reani.
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