Por RUBENS RICUPERO
O relato da vida de Luiz Gama, feito escravo no século 19, é superior ao do filme candidato ao Oscar
Seis dos nove candidatos ao Oscar se basearam em histórias verdadeiras. Uma delas, a do músico sequestrado e escravizado por doze anos, me chamou a atenção pela semelhança com uma das raras histórias da escravidão brasileira que conhecemos pela pena do principal protagonista.
Trata-se da longa carta em que Luiz Gama conta sua vida. Resgatada do esquecimento em 1989 num artigo de Roberto Schwarz na revista do Cebrap, ela faz pensar, como observou o apresentador, na literatura brasileira que podia ter sido e não foi.
O documento começa desafiador: “Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.” O pai “fidalgo” esbanjou a fortuna em jogatina, não hesitando em vender o próprio filho com 10 anos. Assim como o protagonista do filme, foi reduzido à escravidão criminosamente.
Trazido a São Paulo, onde viveria até sua morte aos 52 anos, em 1882, aprendeu a ler graças a um estudante de quem se tornou amigo. A leitura abriu-lhe o acesso à autoeducação, pela qual conseguiu as provas para a libertação, que deve a si mesmo como primeiro ato de sujeito de seu destino.
Na excelente tese que defendeu em Paris, Ligia Fonseca Ferreira resume a singularidade de Gama: “Ele foi dos raros intelectuais autodidatas do século 19 e o único a ter pessoalmente vivido a escravidão, experiência que lhe devia inspirar a missão de vida: libertar os escravos e fazer valer seus direitos.”
Encarnou o abolicionismo radical, popular, do meio urbano de São Paulo, ativo nos tribunais e na ação direta. Sua vida foi marcada por algumas constantes. A primeira, a insubmissão, da fuga do cativeiro até a demissão da Secretaria de Polícia “por turbulento e sedicioso”. A turbulência consistia em “promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas” porque “detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis”.
Gama ressuscitou lei que “não tinha pegado”, a de 7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os escravos introduzidos a partir daquela data. Como se tratava da quase totalidade dos escravos existentes, sua simples aplicação teria sido uma revolução, liquidando praticamente a escravatura.
Não fosse, é claro, a dificuldade de vencer a parcialidade e má vontade de juízes e governo identificados com os senhores. Essa é, portanto, a segunda constante da vida do rábula, do prático que nunca pisou academia, mas foi o maior advogado do Brasil: ter colocado todo seu conhecimento de Direito a serviço da liberdade de escravos que não tinham como pagá-lo.
Sílvio Romero o consagrou como “o mais apaixonado, o mais entusiasta, o mais sincero abolicionista brasileiro.” Seu maior título de glória, porém, é o que fixou no fecho da carta autobiográfica: “Saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes, e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime”. Uma história gloriosamente verdadeira e bem superior à do filme.
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