Diante da possibilidade de mudanças no processo de demarcação de terras, indígenas convocam movimentos sociais para resistir às violações patrocinadas pelo agronegócio
Por Guilherme Zocchio e Beatriz Macruz |
São Paulo (SP) - Cerca de 200 índios da etnia guarani, acompanhados de outros 100 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento Passe Livre (MPL) e do Comitê Popular da Copa do Mundo, realizaram nesta sexta-feira, dia 6, um protesto em São Paulo (SP) contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215. Eles pedem o arquivamento do projeto, que transfere a tarefa de demarcação de territórios indígenas e áreas quilombolas do Poder Executivo para o Congresso Nacional.
“Estamos aqui hoje para mostrar nossa insatisfação com uma política de Estado”, explicou àRepórter Brasil Karaí Popygua, liderança indígena e morador da aldeia Tekoa Pyau, na terra indígena Jaraguá, localizada no extremo norte da capital paulista. “Estamos resistindo a todas essas investidas. Queremos muito que o governo respeite os nossos territórios e demarque os nossos espaços, para que possamos viver de uma maneira justa em nossas terras”, acrescenta.
Os manifestantes ocuparam os dois sentidos da avenida Pedro Álvares Cabral —“homenagem ao primeiro branco que invadiu nossas terras”, como lembraram os índios —, em frente à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), onde ocorria uma audiência pública para discutir a PEC 215, organizada por integrantes da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), a chamada bancada ruralista. De acordo com os índios, a iniciativa faz parte de uma série de tentativas dos ruralistas de fortalecer a proposta e conseguir sua aprovação. Os manifestantes afirmam que não participam dessas atividades com o objetivo de não legitimar o projeto.
Vazia, audiência não tem participação indígena
Organizadores da audiência no interior da Alesp, os deputados federais Osmar Serraglio (PMDB/PR) e Junji Abe (PSD/SP), integrantes da bancada ruralista, argumentaram, na abertura do evento, que “pretendiam ouvir todas as parcelas da sociedade brasileira envolvidas”. Mesmo assim, a sessão estava esvaziada e contava com de pouco mais de 20 presentes, com maioria de representantes de entidades ligadas ao agronegócio. Nenhum indígena compareceu.
Também estiveram presentes o procurador da República Walter Claudius Rothemburg, o jurista Dalmo de Abreu Dallari, o desembargador do Tribunal Regional da 3ª Região (TRF-3) Luiz Stefanini e o diretor da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (Faesp), Angelo Munhoz. Além deles, participaram representantes da Sociedade Rural Brasileira, da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e da Organização das Cooperativas do Estado de São Paulo.
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“Seria inútil participar da audiência. A gente já sabe o que significa essa PEC”, afirmou Jera Guarani, residente da terra indígena Tenondé Porã (veja mais abaixo), nas imediações de Parelheiros, extremo sul de São Paulo (SP). Segundo ela, a iniciativa dos ruralistas tenta enganar os povos indígenas ao argumentar que no âmbito legislativo a demarcação de terras seria mais rápida.
Ela ressaltou que, por conta da força da bancada ruralista e da sub-representação de índios no Congresso, dificilmente a medida seria benéfica. “Todo mundo sabe, e principalmente os índios, que se a demarcação de terras cair nas mãos deles não vai haver mais demarcações”, salienta.
“A PEC 215 é absolutamente inconstitucional. Ofende a Constituição a começar pela quebra da separação de poderes”, disse o jurista e professor aposentado da Faculdade de Direito da USP, Dalmo Dallari, em entrevista à reportagem. Ele estava presente na audiência que ocorria ao mesmo tempo do protesto no interior da Alesp (veja box acima). “As tarefas administrativas são de competência do Executivo e o que se está pretendendo é que o Congresso participe da demarcação de terras, que é atividade essencialmente administrativa.” “Outro ponto é que a PEC permite a revisão de terras já homologadas. Não é possível constitucionalmente essa revisão que, em muitos casos, significa retirar direitos fundamentais”, completou Dallari.
Ruralistas e bandeirantesDurante o ato, os indígenas malharam bonecos representando membros da bancada ruralista, como a senadora Kátia Abreu (PMDB/TO) e o senador Blairo Maggi (PR/MT), e os deputados Alceu Moreira (PMDB/RS), Luiz Carlos Heinze (PP/RS) e Paulo César Quartiero (DEM/RR). E também afixaram cartazes com o rosto dos parlamentares no Monumento às Bandeiras, vizinho ao Parque do Ibirapuera, em São Paulo (SP), e nas proximidades da Alesp.
“Os ruralistas de hoje são os bandeirantes de ontem, e por meio da caneta querem nos matar como nos mataram no passado com suas armas de fogo”, afirmam os índios em um manifesto divulgado nesta sexta-feira. “Enquanto os brancos homenageiam em estátuas, ruas e rodovias aqueles que nos mataram, seus governantes continuam encarnando o espírito dos bandeirantes. Pedro Álvares Cabral foi o primeiro ruralista. E muitos o sucederam”, acrescenta o documento. “[Eles] têm o espírito dos bandeirantes, aqueles que usam de seu poder para enriquecer e concentrar terras, enquanto nós povos originários continuamos nas beiras de estrada, espoliados de nossos tekoa, e grandes massas de excluídos seguem sem ter onde dormir, sem ter onde morar, sem ter onde plantar.”
Jaguata katu joupiveguari!Organizados em torno da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), que reúne no município de São Paulo guarani do Sul e Sudeste do Brasil, os índios também conclamam, segundo o manifesto divulgado hoje, que “movimentos sociais do campo e da cidade se unam para formação de uma frente única contra os ruralistas”. Conforme afirmam, políticos ligados à bancada ruralista e empresários do ramo do agronegócio estão entre os principais patrocinadores da violação de direitos contra índios, pequenos agricultores, trabalhadores sem-terra e outros povos tradicionais.
“Qualquer movimento do campo, historicamente, sofre um ataque da oligarquia rural e, hoje, do que a gente chama de agronegócio, com a mídia e o capital financeiro, que avançam em territórios sobre os quais ainda não têm controle”, aponta Michel Navarro, da coordenação regional do MST. As organizações citam no manifesto, por exemplo, o deputado federal Luiz Carlos Heinze, que em uma declaração recente classificou homossexuais, quilombolas e indígenas como “tudo aquilo que não presta”. Recentemente, o parlamentar foi, juntamente com seu colega Alceu Moreira (PMDB/RS), alvo de uma representação por racismo e incitação ao crime, apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF).
“Da mesma forma que ocorre com os indígenas, acontece com os assentamentos [da reforma agrária]. Então, para a gente enfrentar a concentração de terras e a força do agronegócio no Congresso, precisamos fazer uma ampla aliança, sobretudo com os povos do campo”, lembra o integrante dos Sem Terra.
O ato durou cerca de três horas. Ao longo da manifestação, os índios entoavam cânticos e celebravam a sua cultura. “Jaguata katu joupiveguari!” e “Nhanembaraete joupiveguari!”, ouvia-se durante a passeata. Em guarani, eles queriam dizer: “Vamos andar juntos, todos aqueles que são iguais. Vamos ficar fortes, todos aqueles que são iguais!”.
Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo também é alvo de protesto
A população guarani que reside na Grande São Paulo distribui-se hoje em seis aldeias, que fazem parte de duas Terras Indígenas atualmente em processo de regularização fundiária. A demora em solucionar os problemas nessas terras fez com que o ministro José Eduardo Cardozo também fosse alvo de protestos na tarde desta sexta-feira.
Duas aldeias, denominadas Aldeia Ytu e Aldeia Pyau, localizam-se no Pico do Jaraguá e compõem a Terra Indígena Jaraguá. As outras quatro aldeias localizam-se no extremo sul da metrópole, na Terra Indígena Tenondé Porã, duas delas em Parelheiros (Aldeia Barragem e Aldeia Krukutu), uma próxima ao distrito de Marsilac (Tekoa Kalipety) e a última em São Bernardo do Campo (Aldeia Guyrapaju). Hoje, a Funai reconhece que esse território deveria abranger 16 mil hectares (Para pesquisar sobre as terras indígenas existentes no Brasil, clique aqui).
A Terra Indígena Jaraguá, situada na Zona Norte da capital e que, segundo a CGY, é a menor do Brasil, concentra aproximadamente 700 guarani em 1,7 hectare, embora a Funai reconheça que deveria abranger 532 hectares. A aldeia Pyau fica fora dos 1,7 hectare já regularizados e atualmente há uma decisão judicial que determina o despejo dos Guarani que ali habitam.
O processo de demarcação conforme a metragem reconhecida pela Funai agora depende do Ministério da Justiça e os guarani reivindicam a publicação imediata da Portaria Declaratória de todas as Terras Indígenas na Grande São Paulo.
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