É melancólico que um diretor como McQueen ceda à estética dominante justamente para contar uma história que definitivamente não prescindia de coragem e enfrentamento para, de fato, atualizar o tema
Por Beatriz Macruz* |
“12 anos de escravidão” é um daqueles filmes que o espectador identifica como “muito bem feitos”: tudo aquilo que aparenta salta aos olhos de tão impecável – trilha sonora, decupagem, fotografia, atuações. O diretor Steve McQueen se esmerou para conduzir o drama de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), negro livre e nortista nos Estados Unidos de 1841, um país rachado em dois: sul e norte, a caminho da guerra civil que estouraria em 1861 e levaria à abolição da escravidão no país, em 1863. A trama é inspirada na história real que o próprio Solomon Northup registrou e publicou logo após a sua libertação.Mas “12 anos de escravidão” não se propõe a falar da abolição da escravidão, nem da Guerra Civil Americana, nem das questões políticas e econômicas que praticamente transformaram os Estados Unidos em dois países diferentes no período em que a história se passa. O filme trata da jornada de um homem pela sobrevivência, em busca da liberdade que um dia já fora sua. Por outro lado, ao receber o prêmio de melhor filme no Bafta 2014 (o mais importante prêmio cinematográfico do Reino Unido), o diretor Steve McQueen declarou que a obra serve para que “nos próximos 150 anos um cineasta não precise fazer outro filme como esse revelando a existência dos 21 milhões de indivíduos que trabalham como escravos, no mundo, exatamente agora, neste momento em que estou falando para vocês”.
O discurso do diretor é louvável, e a narrativa de “12 anos de escravidão” é, sem dúvidas, cativante – o longa, aliás, é um dos candidatos favoritos ao Oscar de melhor filme. No entanto, se a fala de McQueen e a história real de Solomon parecem mobilizadoras, não se pode dizer o mesmo do resultado final da produção. É de se questionar, justamente, a forma que essa história e esse discurso ganham na tela.
Voltemos um pouco na filmografia de Steve McQueen, cineasta famoso pela plasticidade e estilismo acirrados, que aqui se conforma a uma narrativa muito mais tradicional, o que, por si só, não é necessariamente um problema, uma vez que estamos diante de uma história calcada na jornada de um herói, e que, portanto, só pode existir no percurso/narração dessa jornada.
O problema é que ao mesmo tempo em que McQueen opta por esse tipo de narração, ele acaba por comprar um discurso hegemônico que muitas vezes vem carregado com ela. A começar pelo fato de que a todo tempo os personagens brancos ressaltam o fato de Solomon ser um “negro excepcional” – claro que era: numa sociedade em que o negro era oprimido ao ponto de não ser considerado “gente”, um negro letrado, culto e livre se destacava. Por outro lado, destacar as características individuais daquele homem, suas decisões, angústias e concessões, tiram o caráter universal de sua jornada.
Não defendo que o filme deveria destacar os mecanismos dessa opressão, numa pegada denuncista que de nada serve à história e ao cinema |
Não defendo que o filme deveria destacar os mecanismos dessa opressão, numa pegada denuncista que de nada serve à história e ao cinema, mas individualizar uma violência universal que permanece, como a escravidão, é uma tomada de posição política que nada tem a ver com a resistência a ela.
O fato de o filme ser um dos mais fortes concorrentes ao Oscar de 2014 também atesta isso: de tempos em tempos, a indústria cinematográfica americana gosta de dar espaço a temas espinhosos e heranças e culpas escabrosas da humanidade, tais como o holocausto e a escravidão do povo negro. Mais interessante talvez fosse falar sobre a permanência da prática nos dias atuais, ou atualizar a discussão da segregação e discriminação racial. Nesse sentido, “Django Livre”, de Quentin Tarantino, vai muito mais longe, ao trocar os signos históricos que remetem ao tema ao retratar também a jornada individual de um ex-escravo com sede de vingança violenta (quase tão violenta quanto dos senhores de escravos, é bom lembrar), ao som de hip hop. O filme de Tarantino também foi gestado na indústria hollywoodiana, mas suas decisões estéticas têm um efeito político muito mais contundente e confrontador diante da realidade do que a história de Solomon Northup.
Mesmo cedendo à narrativa hollywoodiana, o estilo habitual de McQueen emerge em alguns momentos de “12 anos de escravidão”, especialmente nas cenas de violência física – como no plano-sequência do açoitamento da escrava Patsey (Lupita Nyong’o), ou na beleza da luz na cena sombria em que Solomon se descobre escravo. Essas inserções de uma linguagem cinematográfica supostamente mais sofisticada, embora visualmente bonitas, servem novamente a um discurso hegemônico um tanto sádico e estetizante – estetiza-se a violência, a plateia percebe, sente junto, e pronto: expia a culpa. Se o filme ganhar muitos Oscares, essa sensação de missão cumprida – tanto da indústria, por dar espaço a uma história como essa, quanto do seu espectador médio, branco e liberal – aumenta ainda mais.
Solomon cumpriu sua jornada de superação, deixou Patsey e muitos outros escravos para trás, e retomou sua condição de homem livre. O fato de que, depois de liberto, ele tenha se tornado uma ativista pelo abolicionismo somente é mencionado nos créditos finais, e “12 anos de escravidão” sequer se dá ao trabalho de discutir o que é essa liberdade pela qual Solomon resistiu e esperou praticamente impassível por 12 anos, ou o que era ser negro e livre em um território dominado por brancos; em que você podia ser, simplesmente, sequestrado e vendido, por causa da cor da sua pele.
É melancólico, na verdade, que um diretor como McQueen, com aspirações estéticas muito mais ousadas em filmes anteriores, como no cult “Shame”, sobre um homem viciado em sexo, ceda à forma hegemônica justamente para contar uma história que definitivamente exigia coragem e enfrentamento para, de fato, atualizar o tema. “12 anos de escravidão” é um filme melhor quando fala sobre a tentativa de um homem de voltar para a sua família, um pouco como na “Odisséia”, a jornada de Ulisses – herói branco e livre da civilização ocidental. Enquanto isso, 21 milhões de indivíduos trabalham como escravos no mundo.
* Beatriz Macruz é jornalista e escreve sobre cinema
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