quarta-feira, 8 de maio de 2013

O espetáculo da vida é interrompido pelos que não possuem amor à vida


Por Fernando Molica, jornalista e escritor
Deve até estar dentro da média, mas o noticiário dos últimos dias foi duro de engolir, tamanha a quantidade de casos de agressão à vida: a menina de Goiânia baleada ao defender o pai, a dentista queimada viva em São Bernardo do Campo, o homossexual atropelado e morto em São Gonçalo, os estupros no Rio e — por que não? — a caçada ao bandido transformada num videogame em que a busca pelo alvo se revela mais importante do que o respeito à integridade de quem passava pela rua. É como se, nesses casos, a vida fosse equiparada às mortes que ocorrem num filme do 007, sem sangue, sem dor.
Diante de tanta insanidade, vale lembrar de um dos mais bonitos e emocionantes textos de exaltação à vida escritos em português, o quase sexagenário poema e auto de Natal ‘Morte e vida severina’, do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Não sou um bom leitor de poesia, tenho dificuldades de me enquadrar no ritmo dos poetas, de embarcar em suas divisões. Mas me apaixonei pelo poema ao ouvi-lo, pela primeira vez, num belíssimo especial produzido pela Globo em 1981 e que foi estrelado pelo grande José Dumont (que, por sinal, anda meio sumido). O programa se baseava na versão musicada por Chico Buarque.
O poema narra a migração de um Severino que cruza o Sertão em busca do mar. Na jornada, tropeça várias vezes com a morte. A “indesejada das gentes”, como a chamou outro grande poeta pernambucano, Manuel Bandeira, atravessa de diversas formas o caminho do retirante. Diante de tanta tristeza, ele desabafa: “Desde que estou retirando/só a morte vejo ativa.”
Desencantado com a miséria dos mangues, Severino vê o Rio Capibaribe e questiona a própria vida: “E chegando, aprendo que,/nessa viagem que eu fazia,/sem saber desde o Sertão,/ meu próprio enterro eu seguia.” Mas sua tristeza é interrompida pelo nascimento de um menino, “uma criança pálida,/é uma criança franzina,/mas tem a marca de homem,/marca de humana oficina.” Apesar de magro, é belo “porque com o novo/todo o velho contagia.” O retirante ouve então que não há melhor resposta “que o espetáculo da vida”; “vê-la desfiar seu fio,/ que também se chama vida”. No fim, João Cabral ressalta a beleza e o valor de qualquer vida que brota e explode, “mesmo quando é uma explosão/como a de há pouco, franzina;/mesmo quando é a explosão/de uma vida severina.”

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