terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Brasil que o brasileiro não conhece


terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Um país devastado pelo esquecimento do poder público prevalece no interior do Brasil. Os nascidos neste país do atraso são expulsos de seus lares pela miséria e obrigados a migrar para um dos 54 municípios e seis capitais que concentram a maior parte da riqueza gerada no país. Esse “clube dos 60”, como são chamadas essas cidades por alguns especialistas, é parte da fotografia da desigualdade brasileira. Em contraponto a ele, os 1.325 municípios mais pobres do país somam, juntos, o equivalente a 1% do Produto Interno Bruto (PIB).

O Brasil que comemora a chegada do pleno emprego esquece, na visão dos analistas, que as estatísticas alardeadas pelo governo são apenas amostras dos grandes centros urbanos, onde a taxa de desocupação chegou a 4,9% em novembro do ano passado, o menor da história para o mês. O problema é que, ao mesmo tempo em que se comemora a força do mercado de trabalho, cerca de 20% das famílias precisam receber o Bolsa Família para sobreviver, porque seus integrantes não têm qualquer renda.

“Os benefícios sociais apenas aliviaram a pobreza. É preciso crescimento contínuo da economia com estabilidade de preços”, alerta Marcos Troyjo, professor de economia da Universidade Columbia, em Nova York. “O desemprego está próximo das mínimas históricas. É muito bom do ponto de vista social. Mas traz um desafio: crescer com ganhos de produtividade, em todas as regiões, para que as desigualdades de renda diminuam”, pondera Caio Megale, economista do Itaú Unibanco.

Distante 450 km de Teresina, capital do Piauí, o povoado de Baixa do Sítio não consta sequer nos mapas. Com pouco mais de duas dezenas de casas, até São Pedro se esqueceu da terra onde vive dona Francisca Otacília Rodrigues, 54 anos. Há dois anos, não chove no local, o que agrava a situação de abandono vivida pelos poucos moradores — no lugar não há água, luz, esgoto, e os hospitais e bancos mais próximos ficam a pelo menos 30km de distância, na cidade de São João do Piauí. Dona Francisca, que representa a realidade mais desanimadora do Brasil que ninguém vê, enxerga o futuro com pouca esperança. “Não tenho fé de que as coisas vão melhorar aqui, não. Já prometeram muito, mas até hoje nem a energia elétrica chegou”, conta.

Trocados contados
Se a falta de luz atormenta a vida de dona Francisca Otacília Rodrigues, 54 anos, nada lhe tira mais o sono do que o medo da sede. No povoado de Baixa do Sítio, em São João do Piauí, não há um poço. Ela conta com a Operação Carro-pipa do governo federal para receber o equivalente a 8 mil litros de água a cada três meses.
“Como não é sempre que o caminhão vem, a cisterna às vezes fica vazia”, conta. O líquido tem de ser repartido com os animais. Para evitar o desperdício, é usado várias vezes na lavagem de louças e das roupas. Quando as cisternas secam, os moradores de Baixo Sítio têm que tirar do próprio bolso R$ 300 para pagar mais um carro-pipa. O dinheiro, no entanto, é escasso para todos. Francisca é sustentada por um salário mínimo, fruto da aposentadoria do marido já morto. “Infelizmente, meu dinheiro é contado. Tenho, inclusive, que reservar parte dele para ir à cidade para sacar”, conta.

Como no pequeno povoado não há qualquer transporte público, ela tem duas opções: ou paga R$ 20 (ida e volta) para um carro que passa somente às segundas-feiras ou anda seis quilômetros “até a placa”, na rodovia, onde espera pelos carros que cobram entre R$ 4 e R$ 6 pelo trecho. “Transporte aqui é muito difícil. Quando a gente fica doente e não tem condição de esperar até segunda-feira ou ir andando até a estrada, tem que pagar R$ 100 para o carro vir aqui buscar”, lamenta. A pouco mais de 60 km da casa de dona Francisca, no povoado de Maquiné, da cidade de Coronel José Dias, a aposentada Erudite Dias de Santana Gomes, 66 anos, sofre com o risco da Doença de Chagas. Nos galinheiros, é possível achar dezenas de barbeiros, o agente transmissor. Muitos dos vizinhos de Erudite já foram infectados, mas poucos encontram tratamento, mesmo nos hospitais de Teresina.

A única solução é ir para São Paulo. A casa simples de taipa onde Erudite vive com o marido abriga todo tipo de necessidade. Sem energia elétrica, ela, muitas vezes, restringe o cardápio a arroz puro por não ter como conservar a carne. “Dinheiro para o feijão também não tem. Quando consigo ir ao mercado, compro uma mistura com carne, o suficiente para um dia só”, conta.

Abandono é total
SIMOLÂNDIA (GO) — Nos rincões do Brasil que ninguém vê, a falta de acesso a serviços públicos é uma mazela que afeta homens e mulheres, adultos e crianças. Não importa o credo ou a cor. São todos vítimas do abandono do Estado. “A gente ouve o povo dizer que a escravidão acabou. Mas somos escravos desta vida sofrida”, desabafa o piauiense Geraldo Ferreira de Sousa, um lavrador de 44 anos que há nove vive sob a pior das condições sociais, em um assentamento rural distante cerca de 250 quilômetros da capital da República.

Todos os dias, os dois filhos de Geraldo,uma garota de 18 anos e um rapaz de 15, acordam às 5h da manhã e caminham três quilômetros até chegar à parada de ônibus e pegar a condução para a escola. No barraco de pouco mais de 10 metros quadrados em que vive a família do lavrador, não há água encanada nem energia elétrica. Sem muros ou cercas, a propriedade é protegida por dois cachorros vira-latas, que ladram sempre que algum estranho se aproxima.

“Tudo o que conseguimos é com muita dificuldade, com muita luta”, diz ele.
Para cidadãos como Geraldo, com direito a voto, mas sem acesso a serviços básicos que o poder público tem obrigação de prover, um simples banho quente é coisa de outro mundo.

“Aqui não tem nada. Nem privada, nem chuveiro. Quando a gente fica apertado, resolve no mato mesmo”, confidencia o estudante Robério Santos Barbosa, 17 anos.

O líder comunitário Glaucio da Silva Oliveira, 31, sentencia: “Este é o corredor da miséria. Sem dúvida, o lugar mais carente de atenção de todo o nordeste de Goiás”.

Sofrimento A sensação de abandono é latente. Glaucio, Robério e Geraldo estão entre mais de uma centena de brasileiros de 40 famílias pobres que acreditavam na promessa de que, um dia, o assentamento rural Zumbi dos Palmares, hoje sinônimo de descaso, se tornaria uma comunidade estruturada, com abastecimento de água potável, luz elétrica e estradas asfaltadas.

Em 2003, no primeiro ano de mandato do então presidente Lula, essas pessoas invadiram uma fazenda abandonada distante cerca de 15km do município goiano de Simolândia, de 6,5 mil habitantes. A desapropriação da terra, em 2005, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), foi a primeira e única grande conquista dessa gente. Além de barracas, umas poucas panelas e bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), eles carregavam consigo a esperança de que o novo governo se empenharia em resolver os problemas fundiários de um país em que o direito à propriedade é um sonho para poucos. De lá para cá, porém, pouco ou nada mudou no assentamento. Protegidas apenas por cercas de arame liso, as 43 moradias são um convite à bandidagem.

“Aqui, roubam até as panelas velhas e as roupas surradas”, denuncia a dona de casa Eleuza Maria de Jesus, de 33 anos.

Cleonice Barbosa Ribeiro, 44, conta que a ausência dos maridos, que migram para municípios vizinhos em busca de trabalho, facilita a ação dos criminosos. “Aqui só ficam mulheres e crianças. Os que têm força para o serviço vão procurar emprego longe”, diz.
“Só Deus para olhar por nós, porque, se depender da polícia ou do governo, a gente pode esperar pelo pior”, desabafa.

E o pior pode mesmo acontecer. “Tempos atrás, um barraco pegou fogo. A gente acha que foi a lamparina que estourou ou algo do tipo”, conta Glaucio Oliveira, um dos moradores mais antigos do assentamento. Maria de Fátima Alves, 53 anos, teve um susto ainda maior. “Esses dias, meu marido passou mal. Chegou a desmaiar. Entrei em desespero. Liguei no Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), mas acharam que era trote. Insisti umas cinco vezes, e nada. Então, corri para a estrada e gritei por socorro”, lembra. Só decepção.

No rastro de problemas que os moradores enfrentam todos os dias, nenhum é maior do que a sensação de que todo o sacrifício pode ter sido em vão. Há nove anos, quando demarcou o local, o Incra teria dito que o assentamento comportaria até 56 famílias. Tempos depois, após visitarem o terreno, técnicos do órgão disseram que a capacidade, na verdade, era outra: 33 famílias. “Só que aí já era tarde. Quem tinha vindo para cá não quis mais sair e ficou por isso mesmo”, ressalta Glaucio.

Com a indefinição, o plano de regularização do assentamento não foi aprovado. O mesmo ocorreu com o crédito para construção das casas populares, que está parado à espera do aval do Incra. Tristeza ainda maior foi descobrir, pelo próprio Instituto, que grande parte da área é imprópria para cultivo agrícola. Quase todo o terreno é de solo arenoso, que dificulta o plantio de culturas tradicionais, como o milho, a soja e o arroz. Mesmo assim, ainda há quem acredite que um dia as terras serão férteis. “Tenho fé que um dia melhore. Aos pouquinhos, a gente fez pegar um feijão-vagem, uma melancia”, diz o lavrador Geraldo Ferreira.

Para o diretor de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rafael Guerreiro Osório, a esperança do agricultor de que um dia aquelas terras serão férteis não exime o Estado do erro de ter permitido que dezenas de famílias vivessem nessa situação. “De nada adianta assentar pessoas em um pedaço de terra improdutiva, em que elas não poderão trabalhar e tirar dali o próprio sustento. Isso só reforça a condição de miséria delas”, adverte.

Em resposta ao Correio, o Incra afirma que o assentamento “foi concebido inicialmente para receber 53 famílias”. No entanto, em 2009, após encaminhar uma equipe de vistoria ao local, aplicou os critérios da legislação e a capacidade de ocupação foi “corrigida” para 33 famílias.

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